Repensar o pasado

O paradigma ideológico dominante desde o século XIX, se não desde antes, tem estabelecido um princípio segundo o qual o progresso é irreversível e, por tanto, o devir histórico é um contínuo melhoramento quer no social e no político, quer no institucional e no económico.
Esta percepção, ainda que gravada a lume nos nossos cérebros, é permanentemente desmentida pola realidade. Dous exemplos do nosso entorno podem confirmá-lo.
Um é a mal chamada Guerra Civil Española, que devolveu ao estado no seu conjunto a uma situação próxima, no económico, a cen anos antes e, no ideológico, a um estadio próximo com o século XVI, época muito menos permissiva em todo do que a despreçada Idade Média.
Outro exemplo é a crise actual. O retrocesso em direitos, estruturas políticas, prestações sociais e condições económicas, em comparação com vinte ou trinta anos atrás, é evidente... Ainda que a Botin lhe vaia de pérolas.
Na análise feita polo nacionalismo, até hoje, de épocas passadas do nosso país esta eiva está sempre presente. Muitos dos nossos intelectuais, formados num contexto de ruralismo post-bélico e influídos por este preconceito do progresso, acreditaram na ideia de que o passado do nosso país foi sempre como aquel triste, miserável e doloroso “presente seu” que chamamos Franquismo.
Esta introdução pretende contextualizar uma ideia que, desde há tempo, ronda na nossa cabeça. A Galiza medieval, e por medieval quero dizer desde o século XI, mais ou menos, não responde ao concepto de ruralismo citado acima. Óbvio que uma proporção alta da população vivia no rural e trabalhava nele, mas não eram apenas labregos que praticavam uma agricultura de subsistência. Mesmo deveu haver um número significativo de moradores do rural que não eram labregos a tempo completo e desempenhavam ofícios ou actividades vinculadas com o comércio ou a produções artesãs.
Quero advertir que esta afirmação não assenta numa análise pormenorizada dos dados económicos das fontes medievais pois não tenho feito um cálculo monetário do produto interior bruto da Galiza do tempo, nem sequer dum dos seus condados.
A minha “intuição”, se me permitem um termo tão pouco científico, assenta em dois dados significativos e habitualmente obviados por óbvios.
1. O número de igrejas e mosteiros. Construídos, mantidos, ampliados e sustentados, polos ingressos por “turismo” jacobeu do tempo –muito mais importante que o de hoje- mas também e sobre tudo com os ingressos derivados das atividades agrícolas.
2. O número de vilas constatadas na documentação e a (curta) distáncia entre elas.
,1.IGREJAS E MOSTEIROS
Sobre o primeiro ponto compre ressaltar o facto de que a Galiza está inçada de igrejas románicas, datadas na sua maioria no século XII. Num cômputo superficial e incompleto (detivem-me ao chegar a 300) podemos numerá-las em mais de 350. Hoje não todas estão completas ou adequadamente conservadas.
A estas haveria que acrescentar um número, difícil de quantificar, de igrejas románicas ou anteriores que foram substituídas totalmente por obras mais modernas em diversos estilos. Ponhamos como exemplos destes casos as igrejas monásticas de Sobrado, Monfero, São Martinho Pinário e muitas igrejas parroquiais, de feição “neoclássica”.
Fagamos uma reflexão sobre essas igrejas e mosteiros. Qual seria o preço, de construirmo-las hoje, dessas construções? Apenas o valor da pedra sem lavrar resultaria consideravelmente alto. Acrescentemos o valor dos anos de trabalhos (a pedra talhava-se à mão nas canteiras, transportava-se e era trabalhada por artesões especializados), da decoração (o interior dos templos, quando menos, era pintado com imaginaria religiosa por mestres artesões) e de todos os complementos: sinos, retábulos, roupas e lencearia, livros litúrgicos, cálizes e ostensórios, cruzes processionais... muitos deles dum valor em metal precioso muito alto. Lembre-se a querência dos homes do norte por saquear a nossas terras, famosas polas suas fastuosas riquezas. Era necessária muita gente para produzir esses trabalhos especializados: uma “classe” artesã.
Desde o nosso ponto de vista é evidente que o país produzia um excedente económico muito significativo que se dedicava, em boa parte, a obras suntuárias. Não era, pois, um país empobrecido em que os labregos produziam a penas para se alimentar precariamente. De se alimentarem precariamente o motivo era o abuso dos privilegiados, clero e aristocracia, não da miséria intrínseca do modelo económico galego na altura.
,2.VILAS E PORTOS
Respeito do segundo ponto, resulta significativo comprovar que a grande maioria das vilas galegas actuais existião já no século XII e princípios do seguinte, quando os reis Afonso VIII e Fernando II (ambos os dous enterrados no “Pateão Real” de Compostela) as dotam de foros. Hai, obviamente, excepções como Vila-Garcia, fundada no século XV ou a Póvoa do Caraminhal ainda mais tardia.
O aforamento das vilas era mais uma reestruturação das instituições “urbanas” do que uma fundação no sentido estrito. Grande parte dessas vilas existia muito antes de recibirem esses foros, mesmo que não haja muita documentação. Em muitos casos essa nova normativa permitiu e promoveu a incorporação de população ás vilas.
Sirva de exemplo a Vila Vella de Redondela, cujo nome a situa cronológicamente antes da “fundação”, no século XII, da vila nova. De Ponte Vedra sabemos que se construíam nela barcos antes de outorgar-lhe foros Fernando II.
Também é significativo o número de vilas aforadas neste tempo como portos, desde Faro (A Crunha) a Baiona. E esses portos hão de ter o seu significado desde o ponto de vista comercial, tanto como via de saída de excedentes a outras áreas de Europa ou África (em forma de vinho, por exemplo), como de base para a elaboração e comercialização de produtos marinhos (peixe salgado e sal).
Não podemos duvidar do interesse económico destes portos para o desenvolvimento do interior, mais ou menos rural, como via de promover a saída de excedentes. Neste sentido resulta significativa a distância habitual entre vilas (uma meia de 25 km ou 5 léguas, equivalentes a um dia de marcha a pé ou com carro de bois) que insinua, quando menos na linha que determina a falha ocidental, uma certa mobilidade de população e bens, para além do trânsito jacobeu.