Mais sobre Portugal: muros, identidades e círculos viciosos

O guia daquele mosteiro enquadrado na Rota do Românico era exuberante em palavras e muito cortês com aquela parelha de “espanhóis” que visitavam o solitário monumento. Dous espanhóis, sim, mas dotados da estranhíssima caraterística não só de falarem, ou quererem fazê-lo, em português, senão de insistirem em serem atendidos nessa língua em vez de naquele espanhol roto por todos os lados que o guia quis utilizar, e que ingenuamente se anunciava como “muito bom”. Sem dúvida, esta esquisita circunstância da parelha fez multiplicar a generosidade expressiva do funcionário. Assim, quando as explicações versavam sobre o estilo rococó dos retábulos da igreja, um túmulo medieval, coberto com a escultura jacente do seu morador e afastado para um lado de uma nave, chamou a atenção dos visitantes. “Quem é?”, perguntaram. “Não sei”, respondeu o guia, se calhar algo incómodo pela pergunta fora do guião, “quiçá um fundador do mosteiro. Um conde dos que aqui havia antes da nacionalidade. Do reino de Leão ou de Castela. Não sei”. “Do reino da Galiza, seria então”, disseram os visitantes. E, por cortesia, calaram: “e tão português como o senhor. Numa palavra, o seu antepassado”.
A anedota, certa e sucedida recentemente, ilustra a distância que muitos portugueses –provavelmente a imensa maioria- sentem a respeito de uma parte do seu passado, aquela imediatamente anterior ao nascimento de Portugal como reino independente. O imaginário coletivo português floresce com um seleto grupo de figuras identitárias que vêm reafirmar no tempo a vontade de independência e de expansão do país: Viriato, Dom Dinis, os heróis de Aljubarrota, Sebastião, o Infante Dom Henrique e tantos outros. E, sobretudo, Afonso Henriques, o primeiro rei. Aquele que, ao liberar Portugal do domínio do assim chamado reino de Leão, liberou-no de Espanha. Antes dele, pouca cousa.
Desta arte, Portugal fica convertido num espaço-tempo de limites precisos e fronteiras bem perfiladas, como cortadas a navalha. Um território diáfano e inquestionável, não apto para nebulosas. Um lugar onde um está ou não está, sem medianias. Uma identidade símplice, nada a ver com a efervescente complicação identitária tão comum aqui, no outro lado da fronteira, essa que se esconde sob o eufemismo do debate territorial. “Eu gosto é de países inteiros”, disse entre desconcertado e incrédulo aquele estudante bracarense no primeiro dia de aulas, após o professor galego tratar de lhe explicar o que é uma Galiza que o jovem desconhecia, bem diferente da Espanha que imaginava[1].
Nem é preciso dizer que os galegos, para a corrente maioritária do pensamento português, ficamos hoje por hoje no lado de fora. Não é que não existamos no imaginário português; existimos abondo. Se eu tivesse vagar, por exemplo, dedicaria parte do meu tempo ao estudo da construção da identidade galega na obra de Eça de Queirós, esse monstro das letras do XIX nascido na Povoa de Varzim. Os frequentes galegos, rudes criados e moços de corda, quando não soldados às ordens do rei de Espanha dispostos a arrebatar-lhe a Portugal parte do seu território na mínima ocasião histórica. “Isto é uma velha carcaça, meu rapaz”, exclama um velho poeta na obra queirosiana de Os Maias, referindo-se ao seu próprio corpo, “mas não está só para odes. Se agarra uma espingarda ainda vão à terra um par de galegos”. Os tempos eram incertos, e os tertulianos do livro jogavam atemorizados com a ideia de uma Galiza estendida pela força das armas até ao Douro, com a bandeira espanhola a ondear sobre Celorico de Basto.
Eu creio que Portugal não é nem o país vizinho nem o país irmão. Portugal é o nosso alter ego. Uma das duas partes esgaçadas do mesmo corpo primitivo, nascidas por mitose e pelo tanto com o mesmo ADN. Um organismo no que, apesar dos quase novecentos anos transcorridos desde a divisão, é fácil reconhecer a maioria das nossas virtudes e dos nossos defeitos, e às vezes multiplicados por dez, tanto umas como outros. Acho também que a Galiza e Portugal encontram-se encerrados cada um no seu círculo vicioso. Nós, no de pretendermos ser os espanhóis que nunca fomos e que nunca nos vão deixar ser, porque nós, no desenho do Estado ao que pertencemos, sempre ocuparemos o lugar de subordinados. Eles, no círculo auto-complacente de uma nacionalidade que, ao excluir boa parte da sua história, exclui-nos a nós com ela.
Mas tampouco é preciso dizer que num país cabem todos os mundos. Que também há em Portugal quem sabe de sobra o que é a Galiza e quem os galegos e as galegas. “Vocês, galegos, deviam ser portugueses. É agradável ouvi-los falar na nossa língua”, diziam na bela cidade da Guarda, na Beira Interior, a um grupo de galego-exercentes. E acrescentavam: “e não como os de Fuentes de Oñoro, que os temos a vinte quilómetros e não querem saber nada do nosso idioma”. Com efeito, muito se tem andado já. Mas muitos mais cantos na maré haverá que cantar e muitas mais pontes nas ondas haverá que levantar, porque este conhecimento ilustrado dista hoje de ser parte da corrente maioritária de pensamento do outro lado da raia.
Estando assim as cousas, o nosso destino é fazer pontes, derrubar muros, recuperar memórias e romper círculos. Um exercício que aos galegos que assim pensamos nos exigirá umas boas doses de reflexão, de paciência e de teimosia, não menores que as que já estamos afeitos a praticar com o nosso próprio povo. E, para os do outro lado, seria momento de agradecer um reajuste da sua ótica que lhes permitisse ver-nos com mais precisão e que favorecesse a nossa inclusão no seu círculo familiar mais próximo. Algo que seguramente nos faria a vida mais fácil e nos ajudaria a continuar a nossa luta contracorrente, essa epopeia diária que empreendemos neste lado da fronteira para seguirmos a ser quem somos.
[1] O professor da Universidade do Minho Carlos Pazos-Justo conta esta anedota na apresentação do seu livro A imagem da Galiza em Portugal, recentente editado por Através, essa editora antiapartheid.
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