Lenine e a contaminação das revoluções

Lenine e a contaminação das revoluções

Há muito tempo que se cristalizaram as mais variadas e díspares opiniões sobre o contributo do pensamento e ação de Vladimir Lenine. Nesse aspeto, as posições difundidas neste tempo de centenário da Revolução de outubro são legado de várias trincheiras ideológicas antigas, sem novidades essenciais. Compreende-se. Ainda hoje, decorrem também polémicas acaloradas acerca do papel de várias das personagens da Revolução francesa. Assim, devido ao caráter ainda mais marcado da reivindicação ideológica comunista, natural se torna que o debate de uma figura como Lenine esteja atravessada de designações antagónicas que vão de criminoso a super herói da classe explorada.Essa discussão não é desprezível para apurar diversas fake news da narrativa burguesa, sem escamotear a repressão contra o povo em que degenerou o regime. Também é útil para apreciar a origem social de vários dos detratores do socialismo. É mesmo especialmente exigente para quem sempre condenou o pseudo-socialismo da URSS. Mas o foco deste artigo é outro.

Sem Lenine não teria havido Revolução de outubro. Poderia ter acontecido outro tipo de agitação política, não a revolução delineada no turbilhão que se presenciou… Sem Lenine não teria havido governo dos sovietes, poderia ter existido outro tipo de governo popular ou social-democrata, não um conselho de comissários do povo determinado em ter a paz, a terra, o pão e a república socialista. Sem Lenine o mapa da Europa seria outro, a seguir à primeira guerra mundial imperialista.

Materialmente, recusamos exorbitar o papel do indivíduo na história, o que é certo. Contudo, há momentos da evolução social cujas transições ficam marcadas pela figura decisiva de uma pessoa. É o caso. Na Rússia de 17 a ideia de partido de vanguarda permitiu a disciplina de quem vinha em trânsito da clandestinidade para a guerra que se queria terminar com a Alemanha, preparou os quadros centrais para o processo revolucionário e a guerra civil que foi movida ao novo poder, trouxe uma súbita identidade e orgulho aos trabalhadores como novos donos da nação. A interpenetração com os sovietes, conselhos operários e populares, já surgidos e esmagados na revolução de 1905 pelo sanguinário czar Romanov à cabeça da aristocracia, permitiu forjar o novo estado a partir desses instrumentos políticos representativos e executivos. A compreensão precisa das contradições entre os estados imperialistas permitiu desenhar uma política de resistência e sobrevivência de um país que reclamava o socialismo.

Lenine esteve na origem dessa análise política dos termos da rutura institucional com o czarismo e com o governo provisório de Kerensky, das controvérsias entre marxistas sobre a possibilidade de erguer o socialismo na Rússia que lhe pareceu de clareza cristalina, da dinâmica interna do partido bolchevique que passa a chamar-se comunista e se prepara para a insurreição, da leitura indignada mas exata da traição da social-democracia por toda a Europa, ajudando ao cerco da Rússia revolucionária. Mais do que a leitura de obras extraordinárias para a projeção do movimento comunista mundial, a leitura de cadernos de apontamentos de Lenine demonstra uma visão em que tanto se preocupa com questões estratégicas e distantes na política ou na ciência como com as questões mais simples do quotidiano e no entanto tão indispensáveis à vitalidade de tudo. O micro e o macro num trampolim da história.

Hoje, também lutamos para aplicar ideias marxistas essenciais para a revolução, a da luta de classes, a da superação do modo de produção capitalista, da hegemonia do Trabalho na libertação da humanidade, do processo de transição que leve a uma sociedade competente, sem lucro, com abundância de recursos e, acrescenta-se, a preservação do ecossistema. A forma como Lenine foi criativo impele-nos à mesma criatividade de aplicação. Há muito que sustento que há condições diferentes na formação do imperialismo que combatemos, devido às multinacionais terem criado um quadro diferente na concorrência entre os estados, situação diversa dos antigos monopólios nacionais, a quem Lenine atribuia a rivalidade entre as potências. Também a teoria do partido, a que chamaram leninista, varia muito nas suas características no tempo e na cultura onde vive, no espaço onde se insere, e depende de outros fatores estruturais, como a liberdade política, o horário de trabalho e a educação dos trabalhadores. Indo mais além, a teoria do estado socialista não pode nos tempos atuais, em condições democráticas, ignorar a representação política plural e o assembleísmo republicanos.

Contudo, a visão ampla de Lenine, considerada uma heresia terrível pelos marxistas “oficiais”, como os classificava o próprio, era a perspetiva de que uma revolução democrática se podia transformar numa revolução socialista.

Era, claro, uma resposta à situação semi-feudal da Rússia czarista, onde o proletariado industrial era uma gota de água no oceano do campesinato. Como levar esse proletariado a encabeçar a revolução pela cidadania, pela igualdade legal, pela paz, a partilha do solo, as 8 horas e o pão e daí evoluir para a nacionalização dos meios de produção? Essa teoria da Revolução “duas em uma”, plenamente consistente com o que veio a acontecer em fevereiro e em outubro desafiou mais de um século de estratégia e é de uma modernidade impressionante. Lenine ainda teve possibilidade, no final de vida, de escrever que as revoluções democráticas também poderiam ocorrer em países capitalistas onde as condições políticas insinuassem fortes restrições às liberdades, permitindo ampliar o campo que deveria desferir o golpe institucional na elite capitalista e agrária reacionária. Analisou esse enfoque dirigido aos Estados Unidos da América, mas também o apontou nas reflexões sobre o fascismo nascente, embora não de forma tão desenvolvida. A experiência dos comunistas nas frentes antifascistas e nas alianças para derrotar o nazi-fascismo recebe inspiração de Lenine a que uns chamaram revoluções democráticas e populares e outros preferiram a tão conhecida expressão da revolução democrática nacional, etc.

A globalização imperialista tem levado a exploração capitalista ao seu apogeu, criando uma situação de difícil resistência aos povos de todo o planeta. O alargamento dessa resistência e a necessidade de gerar situações de contra-ataque e de poder libertador em alguns elos do sistema, exigem a unidade de democratas anti-globalização e anti-autoritários. As tarefas que os movimentos levantam para as ruturas são em geral próximas de uma democracia radical: constituinte, apropriação social dos bens comuns, desarmamento, descarbonização da produção e serviços, respeito pela identidade de género, cultura inclusiva. As possíveis revoluções do nosso tempo serão inevitavelmente democráticas e de rutura com o modo como o capitalismo agride o meio-ambiente e as classes trabalhadoras. Os povos, é crível, querem restaurar democracias que não estejam capturadas pelo poder da finança e do capital em geral. Esse processo social pode abrir caminho a transformações mais profundas no que toca à grande propriedade e à redistribuição do produto social. A democracia global, feita de muita internacionalidade, é o que faz sentido para conduzir o comércio mundial e virar o caminho para longe do abismo a que a globalização capitalista nos reserva. Contrariar esse destino e encontrar na democracia a ponte para o socialismo, pois aí está uma lição de Lenine, digna dos outubros que se perderam e daqueles que se podem pressentir.

ARTIGO PUBLICADO EN ACONTRADIÇÃO