Já temos a indicação de origem do leite, e o preço para quando?

O real decreto 1181/2018, de 21 de setembro, relativo à indicação da origem do leite, empregado como ingrediente, na rotulagem do leite e dos produtos lácteos elaborados e comercializados no Estado espanhol, tem por objeto permitir identificar se o leite e os produtos lácteos que se consumem estão elaborados com leite que tenha a sua origem no Estado espanhol.
Este real decreto foi publicado no boletim oficial espanhol o dia 22 de setembro de 2018 e entrou em vigor quatro meses depois da sua publicação, isto é o passado dia 22 de janeiro.
Segundo algumas interpretações o que verdadeiramente se persegue com esta legislação, que já se aplica em alguns estados da UE, como Portugal, França ou Itália, entre outros, é reduzir as importações (entrada de leite procedente de outros estados, que de ser de dentro da UE não teriam a condição de importações), assim com acrescentar a produção no interior do Estado espanhol para cobrir uma maior quota do consumo interno.
Previamente à publicação deste real decreto houve outras normativas e acordos que também perseguiram identificar a origem do leite produzido no Estado espanhol.
Um dos primeiros intentos remonta-se ao ano 2004 com o real decreto 217/2004 que tinha por objeto a identificação e registro de todos os agentes que produziam, transportavam, recolhiam, mantinham, transformavam ou possuíam leite cru de vaca, assim como registrar todos os movimentos do leite cru, mesmo o deslocamento desde ou cara outros estados. Para o que foi constituído o registro geral de agentes do sector lácteo e ligado com o mesmo o Ministério de agricultura espanhol viu a criar a base de dados “Letra Q” como ferramenta para segurar a rastreabilidade no sector lácteo.
Posteriormente no ano 2010 uma nova normativa viu a regular o uso do logotipo “Letra Q” na rotulagem do leite e dos produtos lácteos, destinados a ser entregados, sem posterior transformação, aos e às consumidoras. O uso do logotipo “Letra Q”, tanto no leite envasado como nos produtos lácteos, tinha por finalidade poder rastrejar a traçabilidade do produto desde o momento que entrava no centro de transformação até a exploração de origem.
Com data de 12 de fevereiro de 2013, 14 indústrias lácteas e 9 de distribuição, junto com o Ministério de agricultura de Espanha assinaram o convênio de colaboração para a implantação e o desenvolvimento de um programa de Produtos Lácteos Sustentáveis (PLS). Assina-se este convênio com o fim de garantir às e aos consumidores a origem “espanhol” do leite e dos derivados lácteos, assim como que o leite empregado, por quem usa o logotipo PLS, foi contratado em condições que garantiam a sustentabilidade do sector lácteo “espanhol”.
Coincidindo com cada uma das crises padecidas pelo setor nos últimos tempos, anos 2009, 2012 e 2015, surdiram documentos e acordos assinados pelas partes intervenientes na cadeia de valor do sector lácteo, e mesmo deram lugar à promulgação de legislação específica, tal como acabamos de ver. Todos eles pretendiam adotar medidas que permitiram “valorizar ajustadamente o leite recolhido”, para lograr um “funcionamento eficiente e sustentável da cadeia de valor”, aplicando nos contratos preços que “de acordo com a evolução do mercado procuraram contribuir à sustentabilidade das explorações”.
Mas nenhum destes acordos, documentos ou normativas teve consequências práticas sobre os preços pagos ao setor produtor. As estatísticas demonstram que os preços não vieram a subir como resultado de toda esta literatura, continuando o Estado espanhol a ser um dos Estados da EU onde menos se paga pelo leite, e figurando a Galiza como o território com os preços mais baixos de todo o Estado espanhol, sendo como é a primeira produtora do Estado e figurando entre as 10 mais produtoras da EU; ou será precisamente por isso?
Para mostra desta situação achegamos os dados do passado mês de dezembro. Neste mês Galiza produz o 35,5% do total do Estado espanhol, em tanto as restantes zonas ficam a muita distância, assim Castela-Leão ficava no 12,8%, seguida de Catalunya com o 10,4% e Astúrias com o 7,9%. Em quanto aos preços, o preço por litro de leite na Galiza foi de 0,317€, entanto a meia do Estado espanhol foi de 0,330€, pagando-se em Castela-Leão a 0,334€, em Catalunya a 0,327€, e em Astúrias a 0,348€.
Mas esta situação não sempre foi assim já que quando a Conselharia do Meio Rural esteve gerida pelo BNG, em concreto durante os anos 2006, 2007 e 2008, o preço do leite pago na Galiza mesmo chegou a estar por riba do preço do Estado francês. Nessa ocasião não houve nenhum documento específico para o sector lácteo, mas sim se praticou uma política de feitos e de negociações com o sector, como foi o estabelecimento de um contrato tipo ou a posta, de novo, em andamento da mesa do leite como foro de negociação com todas as partes implicadas, o que propiciou que se chegasse a acordos que favoreceram ao sector produtor.
Agora, outra vez, com a entrada em vigor desta nova normativa, desde distintos sectores ligados ao governo espanhol do PSOE, se nos volta a falar de que como consequência da mesma se vai produzir uma suba no preço do leite. O mesmo dia da sua entrada em vigor vimos como uma organização agrária, de obediência espanhola, fazia atos de promoção nos supermercados deixando entrever que com a simples rotulagem da origem do leite se vai produzir uma revalorização do mesmo, ou a circulação a traves de grupos de WhatsApp de uma mensagem na que se falava de que uma possível revalorização do preço do leite em 3 cêntimos em litro seria em beneficio do setor produtor.
A realidade é bem distinta. Nestes momentos as empresas lácteas estão a levar pelas casas das e dos produtores lácteos os novos contratos; contratos impostos unilateralmente e não negociados. Pois bem, na prática, na maioria dos casos, e sobre tudo por parte das empresas que mais leite recolhem na Galiza, os novos contratos vêm supor uma baixada dos preços do leite, na maior parte dos casos. Em que mãos ficaram esses 3 cêntimos dos que se fala nessa mensagem de WhatsApp? Não me estranharia nada que o setor transformador e comercializador aproveitaram este feito para subir o preço nos centros de consumo ao tempo que baixaram o preço no campo.
Os resultados da aplicação de normativas parecidas aplicadas em outros estados, como o português, vêm indicar todo o contrário do que nos querem vender aqueles que nos anunciam subidas nos preços do leite como consequência da identificação da procedência do leite e derivados lácteos que consumimos.
Em Portugal o Diário da República publicava o 9 de junho de 2017 o Decreto-Lei 62/2017 que estabelece o regime aplicável à composição, rotulagem e comercialização do leite, dos produtos derivados do leite e aos produtos extraídos do leite. Este decreto-lei reúne a disciplina relativa à rotulagem da origem do leite e do leite utilizado como ingrediente nos produtos lácteos.
Pois bem, o 30 de dezembro de 2018, isto é ano e meio depois da publicação do mencionado decreto-lei, o produtor de leite e vice-presidente da APROLEP (Associação dos Produtores de Leite de Portugal), Carlos Neves, publicava um artigo titulado “O leite já é nacional, falta o preço justo”, do que estrato as seguintes frases: “hoje a rotulagem da origem do leite é obrigatória e agora os supermercados têm orgulho em mostrar a origem nacional do leite que vendem” e continua “o leite disponível para o consumidor já é nacional, falta ser pago a um preço justo aos agricultores. Já não pode haver desculpas com a importação de leite mais barato pelos hipermercados” para finalizar dizendo que “falta ambição às nossas indústrias e cooperativas, ambição de pagar um preço do leite que permita pagar os custos de produção, amortizar os investimentos e pagar de forma justa o trabalho dos agricultores, das suas famílias, dos seus colaboradores e de todos os que trabalham nesta cadeia do prado ao prato.”.
Nada diferente do que defendemos na Galiza organizações como a Federação Rural Galega – FRUGA, com a única, mas não desprezível, diferença de que na Galiza quase não temos indústria nacional já que aproximadamente o 80% do nosso leite é transformado e comercializado por empresas de fora da Galiza, e o 33% do leite produzido na Galiza sai da nossa terra em camiões cisternas sem nenhum tipo de transformação. Este pode ser um dos motivos que podem ajudar a entender porque na Galiza se paga o leite com o preço mais baixo de todo o Estado espanhol. É que ao final uma colónia tem de cumprir a função para a que está destinada: subministrar matéria-prima e mão de obra barata para benefício dos interesses e negócios da metrópole.