A questão nacional

Quando ouvi Ana Pontón, do Bloco Nacionalista Galego, dizer num impressivo comício que “o nacionalismo era o antídoto do imperialismo”, pensei que lá estava uma frase que podia ser sonora em Santiago de Compostela e aí juntar para a esquerda, mas não teria sentido em Paris, por exemplo, onde o nacionalismo hoje representa a extrema-direita, sendo a França uma potência militar e detendo uma trágica história de poderio colonial. E se Marine Le Pen, da Frente Nacional, advoga o fim da União Europeia para se separar da Alemanha, não deixa de ser uma aliada do lado mais belicista do imperialismo americano, dos trumps e fascistóides.
Mas em Santiago o nacionalismo faz todo o sentido: a luta contra a opressão nacional por parte de Espanha arrasta a crítica do imperialismo contemporâneo que sanciona e promove colonizadores. Protegem poderes ocupantes, sejam eles de Telavive, de Rabat, de Istambul ou de Madrid. Os motivos são secundários, seja por razão de interesse comercial ou de dominação global, ou naquela expressão que tudo cobre, a “geopolítica”.
O problema é que nada se resume a uma mera geografia do bom e do mau nacionalismo. O nacionalismo reacionário, pior ainda do que prejudicar os interesses das camadas populares, cria uma narrativa onde apaga os interesses próprios dos mais pobres e dos explorados, em nome duma qualquer Joana D’Arc como faz a Frente Nacional. Várias coordenadas se intercetam hoje acerca da chamada questão nacional, universalmente aceite como a capacidade das nações disporem de si próprias.
A autodeterminação nacional é um direito dos povos reconhecido pelo direito internacional. O povo português, só para situar tempos muito recentes, aprendeu isso com a guerra colonial, com o isolamento mundial da ditadura colonial-fascista, aprendeu pela negativa que as colónias não eram mesmo portuguesas. Mas também aprendeu, pela positiva que Timor não era a Indonésia, na solidariedade mais irmã de sempre.
Veja-se: não é possível grande parte da esquerda portuguesa reconhecer uma questão nacional por resolver no Saara e não a enxergar em Espanha. Há até uma parte da esquerda lusa que quer colocar a questão nacional como a questão-chave portuguesa para libertar o país da União Europeia e da NATO e, no entanto, defende Espanha como Estado unitário. Há também quem queira referendos nas nacionalidades históricas de Catalunha, Euskal Herria e Galiza para derrotar o próprio nacionalismo e unir os operários espanhóis e “espanholizados”, um pouco à moda estranha do Podemos.
Faço um parênteses, para exprimir o espanto do que sucede com as “confluências” de Podemos, onde desde a Catalunha e a Galiza forças semi-nacionalistas se radicalizam. No caso da Catalunha é flagrante que En Comu Podem tem contiguidades com a esquerda nacionalista que contradizem o Podemos de Madrid e não votariam, pelo menos todos, contra a independência em referendo. No caso da Galiza o processo é ainda mais esdrúxulo porquanto a impulsão das Mareas tem um nítido recorte nacionalista emprestado por intermitência a um partido estatal numa espécie de carrocel instrumental, cuja continuidade nestes moldes é precária.
Felizmente já perderam autoridade intelectual aqueles que durante 30 anos fizeram a campanha do federalismo europeu sobre o apagamento das nações, ‘que sentido teria reconhecer mais nações?’ Não perceberam nada com a implosão da URSS, não perceberam nada com a guerra da antiga Jugoslávia, não querem perceber com o Brexit. Mas já não podem fazer a propaganda desbragada contra as nações cujo sentimento se reagrupa na Europa, ora com cores à direita, ora com cores à esquerda. É verdade que é mais difícil reconhecer a questão nacional quando há continuidade de territórios mas isso levaria a negar o processo nacional português, separado de Castela desde o século XVII. Aliás, levaria a rejeitar todos os processos de emancipação nacional da própria Europa.
Vários factos conjunturais provam a dificuldade de olhar para Espanha como um mosaico onde a questão nacional é determinante. O Reino de Espanha fez duas eleições gerais em 6 meses, não havendo maioria de governo até agora, nem absoluta, nem relativa. Muito se especula sobre as várias fórmulas que poderiam originar um executivo que passe no Congresso. Esquece-se que o PSOE poderia formar governo com Unidos Podemos, “confluências”, e forças nacionalistas tradicionais, teria votos mais que suficientes e terminaria o pesadelo Rajoy. Por que não o faz? Não quer ceder nada ao nacionalismo, prefere entregar o poder à direita. Há em Lisboa quem encolha os ombros dizendo que as nacionalidades impedem uma “geringonça” do lado de lá da fronteira.
Outra nota: ainda não me apercebi que se esteja a seguir o processo da Catalunha onde há uma ameaça de secessão real e concreta. Madrid prepara-se, por via do Tribunal Constitucional e da repressão, para desautorizar o parlamento de Barcelona, quem sabe dissolvê-lo, num conflito sem precedente desde a guerra civil dos anos 30. E a Catalunha vai ser o centro da agenda de Espanha mesmo com o torniquete europeu em cima das contas do Reino.
A aproximação e, em muitos casos a própria fusão, dos interesses de classe do Trabalho e do interesse Nacional traz consigo a vizinhança das esquerdas sociais e nacionais. Uma vizinhança que não havia há algumas décadas atrás. As esquerdas sociais e nacionais são inconfundíveis e potencialmente aliadas, é necessário que as esquerdas estatais reconheçam a liberdade de galegos, catalães, bascos, para com eles concluir alianças de progresso. Mas as esquerdas nacionalistas têm também de deixar claro que fazem parte do processo de alternativa. Por situações insólitas, intenções equívocas, oportunismos vários, plataformas voláteis, em simultâneo nas nacionalidades históricas, está a produzir-se um movimento ainda indeterminado como é típico de crises e ruturas mas com o efeito de alterar o quadro do nacionalismo como antecâmara da alteração do quadro estatal. Quem tiver a perceção de que a estratégia pode evoluir sem ceder nos princípios nem fazer táticas de conveniência vai encarregar-se de ter futuro.
A emergência do Diretório mais ou menos prussiano na União Europeia aconselha a que a esquerda portuguesa que se quer defrontar com políticas coloniais do “eurogrupo”, com o agravamento de modelos de dependência e pobreza, tenha outra atenção às várias esquerdas das quatro nações ao lado.
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