Realidades


O funeral de Mário Soares foi preparado ao milímetro para ser um acto nada perfunctóreo, antes emergindo do próprio Estado e promovido por ele.

As televisões fizeram a sua parte e, nos dias que antecederam as cerimónias fúnebres, repetiram ad nauseamos trajectos previstos.

Em concomitância, e desde o anúncio da morte de Soares, multiplicaram-se nas televisões os painéis laudatórios incessantes, num fluxo de comentadores a atestar os méritos e magnificências do falecido e instigando que, sendo as opiniões expressas unânimes entre si, naturalmente constituiriam uma unanimidade nacional.

Os quatro canais de sinal aberto, em articulação com os respectivos canais por cabo, fizeram a cobertuta total e em directo do acontecimento, acompanhando o percurso integral do cortejo fúnebre, desdobrado em dois longos trajectos em dois dias consecutivos.

Assim ficou à vista -comentada a contra-gosto pelos repórteres e documentada objectivamente pelas reportagens em directo - a evidência de tão longo funeral: não havia multidões, o ansiado «povo de Lisboa» não estava lá.

Os habituais comentadores da panóplia televisiva lançaram-se num frenesim a contrariar a evidência das reportagens, ora tentando contextualizá-la («o funeral de Sá Carneiro teve mais gente porque estava no activo de funções»), ora descontextualizando-a («'o povo' não sabe reconhecer o bem que tem, a liberdade»).

Até Pacheco Pereira fugiu com o rabo à seringa na Quadratura do Círculoperguntando retoricamente «como é que se medem multidões?», para se escusar a responder à evidência da falta delas no funeral, enquanto Jorge Coelho, o bulldozer do PS que terraplanava a realidade, se atrevia a afirmar, em televisão, que «eu vi milhares de pessoas no funeral».

O único a pegar na comparação de que toda a gente fugia foi Ricardo Costa, da SIC, ao recordar o gigantesco funeral de Álvaro Cunhal, mas para o reduzir «à máquina e à mobilização comunistas». Se consultar os registos (incluindo aéreos) que tem na SIC (à semelhança das outras televisões), verificará que os números oficiais divulgados chegaram aos 200 mil participantes no funeral (os reais andaram pelo meio milhão de pessoas) e encontrará testemunhos de gente emocionada que se afirmava não comunista e estava ali para homenagear Cunhal, além da presença de muitos, muitos jovens.

Quiseram que a capital saísse à rua para oficializar a entronização de Soares como herói nacional, mas «o povo de Lisboa» só sai à rua pelos que sente seus, como descreve Fernão Lopes na crise do Interregno.

Além disso, nunca são as cerimónias de Estado a definir os heróis - é a História.

Crassos derrotou a revolta dos gladiadores de Espártaco e ergueram-lhe estátuas. Mas foi Espártaco que ficou na História, como líder libertador de escravos.


[Artigo publicado en Avante]

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