Populismo, um equívoco programado
O populismo é a injúria para aqueles que, real ou ficticiamente, afrontam a ordem estabelecida. É a propaganda do “eixo do mal”.
Volto à análise da expressão populismo, questão de que me ocupei no artigo Populismo, do incómodo à aflição.
O motivo próximo prende-se com a edição este mês do livro Populismo, uma brevíssima introdução, de Cas Mudde e Cristóbal Rovira Kaltwasser (ed. Gradiva), que teve larga divulgação, com entrevistas a um dos autores em vários jornais. Este texto faz-se acompanhar de uma vasta bibliografia sobre o tema.
Apesar do esforço sério dos autores, este trabalho confirma, a meu ver, a nulidade de conteúdo da chamada ideologia populista. Mudde e Kaltwasser definem o populismo como “uma ideologia de baixa intensidade que considera que a sociedade está, em última instância, dividida em dois campos homogéneos e antagónicos -“o povo puro” versus”a elite corrupta” – e que defende que a política deveria ser uma expressão da volonté generale (vontade geral) do povo”. O francesismo é uma reminiscência de Rousseau. Ideologia de baixa intensidade, por que razão? Porque não existe por si própria, dizem-nos, existe apenas associada ao liberalismo, ou ao socialismo, ou ao conservadorismo, ou ao fascismo ou a teologias políticas. Daí acharem, só no espaço europeu, que Die Linke, Syriza e Podemos, tanto como a Frente Nacional ou o Partido da Liberdade (tanto faz da Holanda como da Áustria) são todos equivalentemente populistas. O estudo reconhece mas relativiza, e bem, aspetos de personalismo e carisma, estilos de ação, folclore cénico. Também percorre as várias geografias do globo para comprovar que as formações e movimentos que apelidaram de populistas têm ideologias e políticas muito diversas, muitas delas situam-se nos antípodas políticos de outras.
Em alguns casos, notam, o populismo está associado ao nacionalismo mas essa situação é identificada como uma estratégia política do nacionalismo, em geral reacionário, embora não todo, como se sabe há nacionalismo emancipador na Palestina e em casos semelhantes.
Quem tem vantagem em amalgamar,sob a etiqueta de populismo, movimentos políticos tão diversos e opostos é certamente o aparelho dominante dos regimes ditos demoliberais, cada vez menos democráticos e liberais. Isto é, a fração da burguesia no poder.
O apelo ao povo para derrubar oligarquias económico-sociais, na generalidade dos casos nas últimas décadas por via eleitoral, não esclarece só por si que tipo de governo se pretende impor e que ideia de sociedade deve constituir-se. O populismo é a injúria para aqueles que, real ou ficticiamente, afrontam a ordem estabelecida. É a propaganda do “eixo do mal”.
Entretanto, à esquerda, também é verdade, há quem queira substituir o guião da luta de classes pela vulgata de povo versus casta, parecendo dar razão aos mentores do anti-populismo. Pensa essa gente à esquerda, promotores da confusão, que alargam o campo da oposição, ultrapassam distinções como esquerda/direita. O problema é que a realidade não funciona como as suas mentes idealizam, pelo menos enquanto perdurar o capitalismo ou qualquer sociedade dual. A realidade, entendida aqui como campo objetivo das relações e contradições sociais, faz emergir a luta de classes. A mesma luta de classes que molda os interesses da burguesia no poder e puxa também a capacidade dos trabalhadores, em aliança com outros setores sociais,para poderem resistir e contra-atacar, pelos seus direitos imediatos ou estratégicos, sejam eles direitos económicos ou ambientais, direitos de cidadania ou socialistas.
A trajetória do Podemos espanhol, muito imbuído inicialmente desse tipo de ideias incorporadas de Laclau, levou a evoluções erráticas, a espaços vazios de programa e até a alterações de fundo, bem tortuosas, como a proposta de governo de coligação liderado pelo PSOE. O tal PSOE que meses antes era “casta”. Essas guinadas de discurso e de proposta foram acontecendo à medida que este partido foi caindo na real da luta de classes e da perceção de que os partidos representam interesses de classe, aquém da sua autonomia de pensamento.
Infelizmente, para muita população, iludida pelo liberalismo, foi preciso uma troika para perceber que a burguesia não desiste de explorar e oprimir. E não se trata só da exploração relativa da força de trabalho, mas mesmo em aspetos da exploração bruta dos assalariados.
O mérito do trabalho de Mudde e de Kaltwasser, insuspeito de proselitismo populista, estruturando um mapa de referências académicas, foi o de friamente juntar as peças de um equívoco, embora para os próprios a coisa é uma espécie de doença oportunista de outras infeções.
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