Os "euroinómanos" já não podem ocultar a decomposição da UE
A União Europeia está em decomposição. Doravante isto tornou-se uma evidência. Os discursos estabelecidos e os fingimentos daqueles que os nossos amigos italianos chamam de "euroinómanos" mascaram cada vez pior esta decomposição. Desde a semana passada este processo entrou numa nova fase de aceleração.
Muito claramente, a questão dos "migrantes" desempenhou o papel de um detonador. Sobre esta questão somam-se efectivamente os erros políticos, um discurso com pretensão moral que se verifica ser fundamentalmente moralista e uma enorme hipocrisia. Tem-se a prova com o caso Aquarius, este navio fretado pela ONG SOS-Méditerranée. Mas, no fundo, esta questão apenas reflecte as contradições internas que se desenvolveram no seio da UE. Num certo sentido, pode-se pensar que raros são os dirigentes que ainda "acreditam" numa UE federal, ainda que o nosso presidente se agarre desesperadamente a este mito.
Esta decomposição poderia conduzir a uma explosão da UE, assim como também poderia conduzir à sua evolução para uma zona comercial com regras flexíveis, organizada em torno de diversos círculos de cooperação definidos por projectos e problemas particulares. Mas, qualquer que seja a solução, e mesmo que o nome "União Europeia" devesse sobreviver, é claro que esta não seria mais a UE tal como foi imaginada e posta em prática desde a votação do famoso "Acto Único" de 1986. Assistimos à derrocada de mais de trinta anos de "construção europeia".
Um processo bastante avançado
Impõe-se um balanço das transformações, antigas e recentes, que se verificaram na União Europeia. Muito se falou do Brexit, votado em 2016, que alguns esperavam inverter por não se sabe qual trapalhice "legal". Ora, com a votação recente no Parlamento britânico, uma votação em que a sra. Theresa May sobrepujou a facção pró UE [1] , está claro que o Brexit se verificará. O Reino Unido deixará portanto a União Europeia em 29 de Março de 2019 à meia-noite do continente [2] . As eleições gerais ocorridas nestes últimos seis meses, na Hungria e na Áustria, mas também na Eslovénia, levaram (ou mantiveram) no poder governos claramente eurocépticos, que desejam uma modificação profunda das regras da UE. Finalmente, a acção do actual governo italiano, resultante de uma coligação entre o M5S e a Lega levou a por à luz estas contradições.
Foi o resultado da decisão do ministro do Interior italiano, sr. Matteo Salvini, de recusar ao navio Aquarius fretado por uma ONG o direito de desembarcar migrantes recolhidos que provocou o escândalo. As boas almas levantaram-se contra esta decisão. Mas por um lado esta respeitou o direito internacional marítimo [3] e o facto de a ONG em causa não ter atacado o governo italiano o testemunha e, por outro lado, os casos de urgências humanitárias foram respeitados. Apesar de declarações muitas vezes bombásticas, o sr. Salvini aceitou que as mulheres grávidas e as pessoas gravemente doentes fossem desembarcadas e as Guardas Costeiras italianas continuam suas missões de salvamento. O Aquarius, que é regularmente seguido pelos aviões de reconhecimento marítimo italianos e franceses, nunca correu o risco de afundar e é escoltado por um navio da Guarda Costeira italiana, o que é reconhecido pela própria SOS-Méditerranée [4] .
Hipocrisias franco-alemãs
Portanto, o que está em causa é uma política caracterizada por uma cegueira ao real e uma imensa hipocrisia que é o feito de a UE, mas também da Alemanha e particularmente da França. É esta hipocrisia atribui à Itália o peso quase exclusivo da acolhida dos "migrantes" nestes últimos três anos.
O recuo do presidente francês, sr. Emmanuel Macron, que – depois de ter denunciado a atitude da Itália mais em termos de moral do que em termos políticos [5] – foi obrigado a baixar o tom sob pena de ver anulada a reunião que teve esta sexta-feira 15 com primeiro-ministro italiano, é significativo. Declarando que convinha separar a política da emoção, ele voltou a uma política mais razoável, mas ao preço de uma humilhação internacional. A reunião portanto pôde verificar-se e os dois dirigentes exibiram um acordo ainda mais cordial por se saber que estiveram à beira da crise [6] .
Ao mesmo tempo, esta crise entrou na Alemanha onde Angela Merkel foi obrigada a chegar a termos com o seu próprio ministro do Interior, sr. Horst Seehofer. Este último, apoiado por uma maioria dos deputados da CDU-CSU, deseja que a Alemanha faça um acordo com a Grécia e a Itália sobre a questão dos migrantes, um acordo que permitiria à Alemanha rejeitar todos os migrantes não registados previamente. Isto é muito embaraçoso para a sra. Merkel, que vai ser obrigada a pedir o seu acordo tanto a Alexis Tsipras como a Giuseppe Conte. Muito claramente, a sra. Merkel saiu enfraquecida desta crise.
Igualmente, sabe-se de uma reunião dos três ministros do Interior da Alemanha, da Áustria e da Itália sobre a questão da imigração ilegal. Isto mostra a vontade dos governos de se coordenarem. Mas, e isto não escapará a ninguém, trata-se de uma coordenação inter-governamental entre Estados soberanos, coordenação que contorna alegremente os procedimentos e os hábitos da UE e que, provavelmente, porá as suas regras em causa. Sinal dos tempos?
Para além da questão dos migrantes
Isto poderia levar a acreditar que a questão dos "migrantes" esgota a ordem do dia da UE. Ainda que este assunto tenha um lugar efectivamente importante, ele entretanto está longe de ser o único. O governo italiano, sempre ele, acaba de anunciar que proporia ao Parlamento não ratificar o CETA, o tratado de Livre Comércio assinado entre o Canadá e os países da UE [7] . Uma decisão que a prazo poderia provocar a anulação deste tratado. Sabe-se que este último era muito contestado, e não sem boas razões, tanto do ponto de vista do direito dos consumidores como das preocupações ecológicas e também jurídicas. Este tratado previa a substituição do direito dos Estados por cortes de arbitragem comercial. Além disso, esta decisão do governo italiano é contraditória com a vontade da Comissão Europeia de decidir, em lugar e em substituição dos Estados, sobre as questões comerciais. Trata-se portanto da reafirmação da função principal, e fundadora, da soberania dos Estados que está aqui em causa. A decisão tomada pelo governo italiano constitui portanto uma pedrada no charco, ou antes na capoeira de Bruxelas. Além disso, o governo italiano deu a entender que se poderia opor à renovação das sanções contra a Rússia [8] . Aqui ainda trata-se de uma decisão tomada por consenso. Se um país rompe este consenso, outros se seguirão.
Como se vê, as questões económicas e comerciais têm um papel destacado no processo de decomposição da UE. Um processo que foi salientado pela decisão da Alemanha de recusar a maior parte das propostas feitas pelo presidente francês, Emmanuel Macron [9] . A publicação recente pelo OFCE [Observatoire français des conjonctures économiques] de um texto sobre o papel deletério do Euro em relação às economias tanto francesa como italiana confirma-o [10] . De facto, constata-se que o "casal franco-alemão" não existe, a não ser nos delírios dos editocratas franceses. As formas tomadas pelas "narrativas" da crise engendrada pela Itália [11] , em primeiro lugar as escandalosas manchetes da imprensa alemã mas também as palavras extremamente mordazes que Emmanuel Macron havia utilizado, são ao mesmo tempo um sintoma da decomposição da União Europeia, mas constituem também uma das suas causas. Doravante é evidente que a UE não "protege" e não favorece a paz ou o entendimento entre os povos. Trata-se mesmo exactamente do contrário.
O retorno da soberania das nações
Esta decomposição da UE é um processo de longo prazo, engendrado pelas contradições internas desta instituição e também pela sua incapacidade crónica de se reformar de outro modo que não sejam modificações marginais. Neste contexto, o gesto de Matteo Salvini a propósito do Aquarius, quer se aprove ou não, provocou uma cisão importante. Mostrou que um país podia libertar-se das regras da UE e demonstrar ao mesmo tempo a inexistência da "soberania europeia", este mito tão caro a Emmanuel Macron, e a existência da sua própria soberania.
Este gesto terá consequências. Ele contribui para devolver aos italianos uma confiança no governo do seu país e nas capacidades deste. Isso é importante quando se avizinham outros confrontos, em particular sobre as questões económicas. Mas este gesto também é importante para os outros países da UE. Pois se a Itália pode recuperar sua soberania, ela pode num momento de crise decidir que é ela a fixar a ordem do dia dos problemas a tratar assim como a natureza das soluções, o que é uma definição da soberania, e outros países reterão a lição. Poderíamos muito bem assistir, nos próximos meses, uma aceleração do mencionado processo de decomposição. Ao mesmo tempo, este acto de recuperação da soberania não tem nada de incompatível com a busca de cooperações, em que os parceiros podem ser escolhidos e já não serão impostos por Bruxelas. Desenham-se então os contornos de uma outra forma de organização da Europa, uma forma pós União Europeia, mas que não poderá se afirmar senão quando constatada publicamente a morte desta última.
[1] www.bbc.com/news/uk-politics-44456035
[2] www.business.hsbc.fr/...
[3] www.ouest-france.fr/...
[4] www.lefigaro.fr/international/...
[5] www.huffingtonpost.fr/2018/06/12/...
[6] www.huffingtonpost.fr/2018/06/15/...
[7] www.lesechos.fr/monde/europe/...
[8] www.lefigaro.fr/...
[9] www.romandie.com/news/926189.rom
[10] Villemot S., Ducoudré B., Timbeau X., "TAUX DE CHANGE D'ÉQUILIBRE ET AMPLEUR DES DÉSAJUSTEMENTS INTERNES À LA ZONE EURO", in, Revue de l'OFCE, n°156 (2018)
[11] www.ft.com/content/087e3a12-6b1e-11e8-8cf3-0c230fa67aec
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