Operários e camponeses


O programa dos Bolcheviques nos primeiros anos do século XX fundamentava-se na visão de que, em países chegados tardiamente ao capitalismo, a burguesia, ao invés de dar golpes contra a propriedade feudal como o fez a clássica revolução burguesa na história, a Revolução Francesa, faz compromissos com os interesses fundiários. Isso acontece porque teme que, na nova situação, qualquer ataque à propriedade fundiária possa se transformar num ataque à propriedade burguesa. Portanto, a tarefa de libertar o campesinato do jugo feudal não cai sobre a burguesia, como fora o caso anteriormente, mas sobre a classe trabalhadora, a qual constitui uma aliança com os camponeses a fim de levar a cabo a revolução democrática. Uma vez feito isto, no entanto, a classe trabalhadora não pára aí, mas prossegue rumo ao socialismo, embora neste processo sua aliança de classe com o campesinato sofra uma mutação.

Esta visão profunda, expressa em As duas tácticas da social democracia na revolução democrática, de Lenine, está subjacente à agenda bolchevique de lutar por uma ditadura revolucionária democrática de trabalhadores e camponeses, a qual foi uma precursora do nosso conceito actual de uma ditadura democrática do povo. Ao invés de uma aliança da classe trabalhadora com a burguesia liberal, representada na Rússia czarista por partidos como os Cadetes, que uma secção do Partido Social Democrata composto por Martynov e outros advogavam, a ideia de Lenine era que os sociais-democratas deveriam ao invés trabalhar para a formação de uma aliança operário-camponesa. Uma tal aliança, longe de restringir o âmbito da revolução democrática, iria ao contrário ampliar a sua abrangência.

A aliança operário-camponesa, um conceito central do marxismo-leninismo quando aplicado no contexto do terceiro mundo, tem portanto sido encarada como necessária devido à pusilanimidade política da burguesia decorrente da sua situação histórica, sua incapacidade – num mundo onde o socialismo chegara à agenda histórica e a propriedade burguesa já estava sob ameaça – para executar até ao fim a tarefa que fora iniciada.

Embora esta concepção permaneça válida, e na verdade a tendência da burguesia a se comprometer com o latifúndio na nova situação tenha sido repetidamente confirmada pela experiência real no terceiro mundo, inclusive no nosso próprio país, um factor adicional entra em cena sob o neoliberalismo. Isto se relaciona com o facto de que as fortunas económicas dos trabalhadores e dos camponeses agora ficam directamente ligadas; isto é, há um movimento síncrono para baixo nas fortunas económicas dos trabalhadores e dos camponeses. A aliança operário-camponesa torna-se não apenas um instrumento para atingir a tarefa política da classe trabalhadora no contexto da revolução democrática; torna-se também um instrumento essencial para melhorar as condições económicas dos trabalhadores como um todo na era do neoliberalismo.

A razão para esta ligação das fortunas económicas dos trabalhadores e dos camponeses é a que se segue. O neoliberalismo desencadeia um processo vigoroso de acumulação primitiva de capital no campo, onde a oligarquia corporativo-financeira e as corporações multinacionais se chocam com o sector tradicional de pequena produção, especialmente a agricultura camponesa, causando grande sofrimento aos camponeses. Este sofrimento, cuja manifestação no nosso país assumiu a forma de suicídios camponeses em massa, de mais de 300 mil pessoas nas últimas duas décadas, também obriga os camponeses a deixarem suas terras e a migrarem para vilas e cidades em busca de emprego. A aquisição de terras camponesas "por uns tostões" pela grande burguesia, para toda espécie de projectos imobiliários, muitas vezes camuflados como projectos de "infraestrutura", provoca o mesmo efeito de expulsar os camponeses das suas terras.

Dados do Recenseamento da Índia revelam isto claramente. Entre os Censos de 1981 e 1991, o número de cultivadores (trabalhadores principais) passou de 92 milhões para 110 milhões. Mas o número caiu para 103 milhões no Censo de 2001 e para 95,8 milhões no Censo de 2011. Por outras palavras, o declínio coincide precisamente com o período do neoliberalismo; e entre 1991 e 2011, o ano do último Censo, o declínio no número de cultivadores chega a quase 15 milhões, o que é um número estarrecedor!

Nas cidades, entretanto, o número de postos de trabalho criados, mesmo quando a taxa de crescimento do PIB parece muito alta, é extremamente insignificante, insuficiente até mesmo para absorver a taxa natural de crescimento da própria força de trabalho urbana, muito menos dos migrantes das aldeias. Entre 2004-5 e 2009-10, dois anos em que a Pesquisa Nacional por Amostra realizou amplas pesquisas por amostragem e que abrangem um período de alto crescimento do PIB, a taxa anual de crescimento do emprego como "status habitual" (ou seja, daqueles que consideram como “Status habitual” estar empregado), era de apenas 0,8%. Isso era bem abaixo da taxa natural de crescimento da própria força de trabalho urbana, que não poderia estar demasiado abaixo da taxa de crescimento populacional de 1,5%.

Portanto os camponeses migrantes apenas incham o exército do trabalho de reserva nas cidades, embora este facto se manifeste não num crescimento relativo do desemprego aberto, mas sim numa proliferação de empregos em tempo parcial, emprego casual, emprego intermitente e desemprego disfarçado (muitas vezes camuflado como "pequeno empreendedor"). Por outras palavras, o racionamento do emprego assume a forma não de mais pessoas estarem realmente desempregadas, mas de cada pessoa, em média, estar desempregada por um período de tempo mais longo.

Mas não importando a forma que assume, a ascensão relativa do exército de trabalho de reserva tem o efeito de rebaixar as condições médias de vida dos trabalhadores urbanos como um todo. Isto acontece porque não se verificam aumentos na taxa salarial, devido ao crescimento do exército de reserva, ao passo que o reduzido número de horas de trabalho em média implica um rendimento médio mais baixo para todos os trabalhadores urbanos.

O aumento relativo na dimensão do exército de reserva também tem o efeito de enfraquecer as organizações de trabalhadores. Isto aconteceria mesmo se este aumento relativo tomasse a forma de desemprego aberto maior, mas acontece ainda mais acentuadamente quando assume a forma de precarização crescente, um aumento na proporção de trabalhadores temporários. Mesmo o segmento da classe trabalhadora que no passado foi organizado e sindicalizado não pode fugir ao seu impacto, porque a terciarização (outsourcing) do trabalho e a precarização da força de trabalho também começam a caracterizar os sectores onde anteriormente existiram sindicatos fortes.

O efeito geral do sofrimento do campesinato sob o neoliberalismo, portanto, é também o de minar o poder da greve e as condições de vida dos trabalhadores urbanos. Sem dúvida, há modos adicionais, independentemente do sofrimento da migração do campo, pela qual o neoliberalismo também provoca tal enfraquecimento das condições e da força organizacional dos trabalhadores (como por exemplo a privatização de unidades do sector público). Mas a aflição do campesinato e, portanto, dos trabalhadores agrícolas, agrava esta tendência.

Devido a isto, a aliança operária-camponesa emerge como a arma primária na luta para ultrapassar o capitalismo neoliberal. E uma vez que o neoliberalismo sustenta a actual conjuntura que desova o crescimento da tendência comunal-autoritária, com o generoso apoio da oligarquia corporativo-financeira, a aliança operário-camponesa também se torna a arma primária para ultrapassar esta conjuntura e então para a derrota final das forças comunais-autoritárias.

Mas apesar de o neoliberalismo fortalecer o potencial objectivo para a formação de uma aliança de operários, camponeses e trabalhadores agrícolas, a tarefa de realmente constituir uma tal aliança tem de ser empreendida. Uma tal aliança, por outras palavras, tem de ser transformada de uma aliança em si numa aliança para si, para parafrasear a famosa formulação de Marx sobre o proletariado. Ela tem de ser convertida de uma possibilidade objectiva num organismo que realmente comece a intervir activamente.

Este complexo processo de transformar esta aliança em si numa aliança para si começou. O comício Mazdoor-Kisan a ser efectuado em Delhi dia 5 de Setembro, o qual se segue à marcha kisan verificada em Maharashtra alguns meses antes, é um marco importante neste processo de transformação. Até agora havia comícios separados de operários, de camponeses e de trabalhadores agrícolas. O comício de 5 de Setembro será o primeiro comício conjunto destas três classes e, embora suas exigências imediatas sejam por alívio económico, seu potencial histórico para combater o neoliberalismo e o comunal-autoritarismo que ele desova é imenso. Sua significância torna-se ainda maior quando o comunal-autoritarismo está a mostrar os dentes, com prisões à escala nacional de activistas de direitos civis sob toda espécie de acusações arbitrárias e forjadas – e com o anúncio insolente de que mais prisões estão em vias de acontecer.


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