Lutas ideológicas no capitalismo contemporâneo

Lutas ideológicas no capitalismo contemporâneo

A globalização provocou sofrimento agudo para os trabalhadores de todo o mundo. Este sofrimento não se limita apenas ao período da crise pós bolha imobiliária, nem apenas aos trabalhadores dos países capitalistas avançados. A descoberta de Joseph Stiglitz de que o salário médio real de um trabalhador masculino americano em 2011 era algo mais baixo do que em 1968 sugere claramente que este sofrimento tem tido uma longa duração. Da mesma forma, a presunção de que o sofrimento aflige apenas os trabalhadores de países capitalistas avançados cujas oportunidades de emprego contraíram-se porque o capital metropolitano tem relocalizado a actividade económica em países do terceiro mundo com baixos salários, e que os trabalhadores destes últimos consequentemente tem sido os beneficiários da globalização, é completamente falsa: esta relocalização, longe de reduzir as enormes reservas de trabalho do terceiro mundo, foi pelo contrário acompanhada por um aumento da dimensão relativa de tais reservas e, portanto, por um esmagamento das taxas de salários reais. Isto tem sido assim, dentre outras razões, devido ao assalto maciço ao sector da micro produção nestes países, e o despojamento de micro produtores, que a globalização implicou.

Tal sofrimento está a despertar um forte ressentimento entre os trabalhadores de todo o mundo, o qual é mais claramente visível, como agora, nos países capitalistas avançados. E em face desta oposição estão a emergir pelo menos três diferentes posições ideológicas nestes países. Uma destas é uma posição de Esquerda, a qual comentarei depois. As outras duas são posições dentro do próprio campo burguês, cuja principal característica é que elas não visualizam qualquer coisa para além do capitalismo.

Destas duas, uma que emergiu com força gritante é aquela da ultra-direita. Se bem que as posições de Donald Trump dos EUA, de Marine Le Pen de França e de Nigel Farage na Grã-Bretanha, e de seus equivalentes em outros países europeus, não sejam idênticas, no entanto pode ser detectado um certo elemento comum entre elas. Eles encaram a globalização como implicando uma pioria das condições dos trabalhadores, devido à imigração de trabalhadores estrangeiros e à emigração de capital produtivo, nomeadamente para destinos com baixos salários. Portanto, esta posição vê o problema básico como decorrente da competição de trabalhadores de outros países – e a panaceia para isso é restringir tal competição através do impedimento da imigração, da protecção contra bens estrangeiros e da penalização do capital que tenta emigrar para o exterior a fim de se relocalizar em países de baixos salários. Contudo, em tudo isto há pouco reconhecimento do papel do capital financeiro, do facto de que a procura global na economia mundial, à qual podem ter acesso todos os países em conjunto, não pode ser aumentada por causa de hegemonia do capital financeiro. O capital financeiro globalizado, confrontando Estados-nação, os quais quer queiram quer não têm de aceder às suas exigências, insiste por toda a parte em manter a dimensão do défice orçamental dentro de limites. Igualmente, o outro possível meio de financiar maiores gastos do governo para ampliar a procura agregada, nomeadamente através de impostos sobre capitalistas, é também impedido por ele. (Maiores gastos do governo financiado por impostos sobre os trabalhadores, os quais consomem o grosso dos seus rendimentos, não ajudam a aumentar a procura agregada).

É significativo que Trump, que tem proposto agressivamente uma política proteccionista de "empobreça meu vizinho", chegando ao ponto de penalizar investimento directo estrangeiro por firmas americanas para atender o mercado interno dos EUA, não tenha uma palavra a dizer sobre restrições ao capital financeiro globalizado. (Isto tem levado alguns autores a afirmarem mesmo que as suas políticas são anti-capital manufactureiro, mas favoráveis à finança; isto entretanto é um exagero uma vez que ele também está ansioso por reduzir impostos corporativos em geral ).

Em relação a esta oposição, há a posição neoliberal habitual, totalmente aprovada pela finança globalizada, a qual atribui o sofrimento dos trabalhadores não à globalização mas a toda espécie de outros factores e que afirma mesmo que proteccionismos de qualquer espécie simplesmente não podem melhorar a condição dos trabalhadores. Em suma, nada deveria ser feito para alterar o presente cenário de globalização. Se algo precisa ser feito, então tem de ser em outras áreas e não em relação ao actual regime de globalização. Christine Lagard, a actual directora-administradora do FMI, articulou esta oposição explicitamente em oposição à administração Trump e desde então muitos comentaristas financeiros têm reflectido seus pontos de vista. De facto, o FMI acaba de lançar um documento argumentando em favor desta posição.

Esta posição está em tamanha bancarrota intelectual que a adesão a ela pela assim chamada "burguesia liberal" só está a servir para reforçar o apelo da ultra-direita, a qual pelo menos tem o mérito de tomar conhecimento do sofrimento do povo. Sua bancarrota pode ser ilustrada pelo exame de um artigo de Martin Wolf, um influente jornalista que escreve regularmente em The Financial Times, de Londres. Seu argumento é que o proteccionismo ao elevar a produção e o emprego em sectores competitivos importadores só afastará recursos dos sectores exportadores. Isto abaixaria mesmo as exportações quando reduz importações, deixando intacto o défice comercial e portanto, por implicação, o nível da procura agregada e do emprego.

A falácia deste argumento está no facto de que um aumento na produção por substituição de importações será a expensas da produção de exportação só numa economia onde haja pleno emprego de recursos (de modo que um sector da produção possa ascender só a expensas de outro), não numa economia que tenha simultaneamente desemprego e capacidade não utilizada. Segue-se portanto que o autor está a argumentar que o proteccionismo não pode aumentar o emprego, só através da assunção de que não existe nenhum desemprego de modo algum. É a crueldade destes comentadores "liberais", exibida através de tais ideias absurdas e logicamente falaciosas, que faz os trabalhadores voltarem-se para os partidos da ultra-direita a expensas dos partidos "liberais burgueses", comprometidos com a ortodoxia do capital financeiro, que tais comentadores favorecem.

Exactamente o mesmo raciocínio falacioso está subjacente a outra proposição de Wolf. Começando pelo truísmo de que o défice em conta corrente de um país deve ser igual ao excesso dos bens e serviços que ele absorve em relação ao que produz, ele argumenta que o actual défice corrente dos EUA nunca poderá ser ultrapassado a menos que a sua absorção de bens e serviços do resto do mundo seja reduzida. Isto é absurdo porque um excesso de absorção sobre o produto pode decorrer não só por a absorção ser demasiado alta como também porque o produto é demasiado baixo e, na verdade, esta última hipótese deve ser o caso numa economia afligida pela crise. O proteccionismo neste caso reduzirá o défice corrente e aumentará a produção interna e o desemprego. (Isto não acontecerá se já houver pleno emprego na economia, o qual é o que Wolf deve estar implicitamente a assumir mesmo em meio a uma crise ).

O argumento de que o proteccionismo da espécie que Trump está a promover não pode logicamente elevar o emprego e a produção está obviamente errado. Mas ele pode promover o emprego só se os outros países não retaliarem contra o proteccionismo dos EUA. Uma vez que o proteccionismo "exporta desemprego" para outros países, ele pode certamente "funcionar" se os outros países estiverem desejosos de importar desemprego. Mas se não estiverem, o que naturalmente é o cenário provável, então o proteccionismo cessa de funcionar e o proteccionismo competitivo pode mesmo agravar a condição de todos tomados em conjunto.

A terceira posição, que é a posição da Esquerda, toma pleno conhecimento do papel do capital financeiro na globalização contemporânea. Ela gostaria de uma globalização despida da hegemonia da finança, na qual governos democraticamente eleitos são capazes de controlar a finança ao invés de serem por ela controlados. Há sérias diferenças dentro da Esquerda sobre o grau em que um país deveria desligar-se da globalização se a hegemonia da finança não for vencida. No contexto europeu este dilema toma a forma de se um país deveria permanecer na União Europeia se as suas tentativas de se livrar das cadeias da finança não derem fruto. O Syriza [NR] na Grécia decidiu permanecer na UE apesar não conseguir livrar-se da "austeridade" imposta pela finança sobre o povo grego. Nas últimas eleições francesas Melenchon, o candidato da esquerda apoiado pelo Partido Comunista exigiu uma renegociação do acordo da UE e controle político sobre o Banco Central Europeu, enquanto deixava aberta a questão de abandonar a UE (presumivelmente até o resultado das negociações de todas estas questões).

Como o trumpismo e a ultra-direita em geral fracassam, uma vez que não enfrentam a questão básica da hegemonia da finança, e como a esquerda adquire maior clareza sobre a necessidade do desligamento da globalização no caso de a hegemonia da finança continuar a persistir, a bancarrota da posição "liberal burguesa" levará cada vez mais trabalhadores a apoiar a esquerda. Isto já está a acontecer com a ascensão de figuras como Corbyn, Sanders e Melenchon; isto aumentará de ímpeto se a esquerda abandonar sua ambivalência residual sobre a globalização.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .


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