Gramsci para todos os gostos

Há dias li num diário espanhol que atribuíam a Miguel Urbán a frase de que “no Podemos todos somos gramscianos, embora uns de direita e outros de esquerda”. Miguel Urbán, já participante em iniciativas do BE, eurodeputado de Podemos, deixou-me na perplexidade sobre a fórmula do partido, já que a distância entre o pensamento do fundador do Partido Comunista Italiano e o pensamento que assume o partido político espanhol me parece considerável, para não dizer galática.
Voltarei, em breves notas e ocasião próxima, ao foco do Podemos. Contudo, aproveito o mote para afastar a ideia de que Gramsci e o seu pensamento possa ser reivindicado fora da tradição comunista e de modo mais incisivo, da área leninista. Antonio Gramsci defendeu com entusiasmo o poder dos conselhos de fábrica dos operários e dos conselhos de aldeia dos camponeses e via neles, depois da experiência dos conselhos da proletária Turim, a realização dos sovietes italianos, ultrapassando o parlamentarismo burguês.
Na esteira de Lénine, seu contemporâneo e conhecido, aplicou as resoluções da Internacional Comunista, particularmente a estruturação do centralismo democrático no partido e a proibição de tendências, chamou-lhe até centralismo democrático e “orgânico”. Como o Partido Socialista Italiano tinha aderido à 3ª Internacional e se recusava a expulsar os social-democratas do partido, Gramsci e outros promoveram a cisão e fundaram o PCI. Gramsci advogava a realização de um bloco político-social alargado para a tomada do poder, que incluía setores determinados da pequena burguesia em função do contexto italiano dos anos 20. Escreveu mais tarde que essa proposta derivava da ideia de hegemonia do proletariado de Lénine.
Gramci, para além de um herói dos trabalhadores e do socialismo, torturado e morto lentamente pelos esbirros de Mussolini, era uma referência na compreensão da história europeia, sobretudo das transformações da idade moderna. A erudição não lhe ocultou o sentido da prática marxista. Mesmo da sua conceção marxista. Admiro a força das suas ideias para combater o determinismo económico, a situação não é apenas determinada pelas relações de produção e pelo nível das forças produtivas, é também determinada pela história do poder, pela cultura, pelas religiões e crenças. Aliás, Marx foi o primeiro a falar da autonomia da superestrutura do Estado face à base económica, pese embora esta marque a tendência geral.
O autor italiano deixou textos premonitórios sobre a natureza do fascismo, movimento que abalou a Itália primeiro que outros países, argumentos que demonstravam que o fascismo não era apenas um método de governo violento da burguesia, ou a ditadura terrorista do capital financeiro como se virá a chamar mais tarde. Infelizmente, Gramsci tinha toda a razão, o fascismo procurava esse objetivo mas não deixava de ser um movimento de massas que arrastava proletários e largos setores da pequena burguesia, tinha por detrás uma cultura integrista de crenças e nacionalismo. Ao fascismo era preciso opor alternativa cultural para além da luta de classes clássica.
O facto do PCI não ser um clone do partido russo, nem neste tempo nem posteriormente, não faz dele uma alternativa estratégica ao modelo leninista da política e do caráter do Estado a construir. Gramsci teorizou bastante sobre os intelectuais na sociedade e nos partidos. Creio mesmo que essa preocupação lhe era antiga, pessoal, nacional mas que o click foi acionado pela observação da sociedade soviética, uns anos já depois da revolução de 17, mais exatamente em 22. A solução do “intelectual orgânico” do Partido de classe não anda longe da função do funcionário descrito n’ “O que fazer?” mas é apresentada de fora para dentro, como uma necessidade de identidade de um grupo social e não de dentro para fora como a necessidade de organizar um partido revolucionário clandestino. Refletia não apenas fragilidades do PCI para organizar o bloco antifascista, para onde queriam atrair partes do aparelho de Estado, mas também a debilidade caótica do Estado soviético. Num certo sentido, a análise implícita da burocracia dos Estados é pré-weberiana. Gramsci acentuou a necessidade de assegurar uma hegemonia social antes da tomada do poder, embora não absoluta como escreveu, e aquilo que mais se tem proclamado pelos seus cultores: o garante do poder socialista está na hegemonia cultural que deve seguir à revolução, quer ela se apresente como convencional ou como uma sucessão de guerra de posições.
Gramsci criticou ainda Rosa Luxemburgo por achar insensata a ideia da greve geral política como meio do derrube do capitalismo, criticou Trotsky a quem reprovou não perceber nem o nacionalismo nem o internacionalismo, ou as análises simplistas de Bukharine sobre sociologia, o tipo de críticas intelectuais que o ajudaram a posicionar-se no “mainstream” leninista. Em suma, com certeza a obra do comunista italiano, primo inter pares, tem um enorme interesse e aspetos de atualidade. Outros não, fizeram parte de uma época. As estratégias de hoje partem da forma do imperialismo e capitalismo presentes e não da ordem do século XIX a virar para o XX. Lenine e Gramsci tiveram de ultrapassar Marx para estabelecer uma estratégia de revolução proletária. Tal como nós hoje temos de ultrapassar essas estratégias. Podemos lamentar o prematuro desaparecimento do autor dos “cadernos do cárcere” e certamente temos mágoa pela perda teórica e da sua praxis, como gostava de chamar ao materialismo militante. O que não se pode fazer é descontextualizar fragmentos de escritos de Gramsci para supor outras vias comunistas que realmente não existiram, ou idealizar bandeiras por mero utilitarismo de conjuntura de um mártir de 1937.
O artigo atópase en A CONTRADIÇÃO
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