Albarde-se


Há dias, um jornalista da CMTV (o canal televisivo do Correio da Manhã) dizia para o seu entrevistado «portanto, o senhor está a dizer que o juiz (...) devia demitir-se», ao que este respondeu, algo alarmado, «não senhor! O que eu disse foi que o juiz (…) devia ponderar a situação em que supostamente está envolvido!».

Estas «conclusões» despudoradamente a martelo podem ser a marca de água do Correio da Manhã e, decerto, não será por acaso que o jornalismo que por ali se pratica ombreie com publicações do tipo Crime, felizmente já falecido.

Todavia, o autoproclamado «jornalismo sério» não tem de que se orgulhar no confronto, seja na televisão, na rádio ou na imprensa escrita, com relevo para a primeira.

Na televisão impôs-se «a narrativa». Raras – talvez raríssimas – são já as notícias que surgem como tal – a descrição de factos, a notação de eventos, o relato de acontecimentos ocorridos aqui e agora.

As actuais notícias televisivas exibem um fio narrativo que as explica e encaminha, que as enquadra e tutela, que as direcciona e conclui, introduzindo-lhes um carácter ficcional intrínseco e, obviamente, flexível e manobrável.

Assim sendo, as notícias televisivas encaminham-se a passos largos para se transformarem na expressão «albarde-se o burro à vontade do dono».

E é aqui que bate o ponto. «A vontade do dono» consubstancia-se linearmente nos proprietários dos meios de comunicação – no caso, canais televisivos –, e para que essa vontade se cumpra, lá está a cadeia hierárquica jornalística com as prebendas da função e a eficácia necessária à concretização dos ditames do proprietário.

Daí esta deriva ficcional (chamemos-lhe assim) das notícias televisivas, provavelmente gratificante a alguns profissionais aplicados em produzir trabalhos criativos mas, sem margem para equívocos, manipuladoras quer dos factos noticiados como da sua recepção pelo grande público, afinal de contas o grande alvo de toda esta trabalheira.

Quando se inicia uma notícia a dizer «o chumbo do Orçamento do Estado por Bruxelas não está posto de parte» desencadeia-se um impacto diferente sobre a notícia original que dizia, simplesmente, «Bruxelas estuda o Orçamento do Estado português», de onde nada mais se devia extrapolar, mas que a notícia «criativa» da Redacção conseguiu associar a «chumbo» que «não está posto de parte».

Do mesmo molde um «estudo sobre a CGD» transforma-se em «dúvidas sobre a CGD», enquanto «relatório de Bruxelas sobre primeiro semestre da economia portuguesa em 2016» surge como «relatório do primeiro semestre da economia portuguesa põe Bruxelas de sobreaviso sobre o segundo semestre de 2016».

Mas esta abordagem «criativa» tem limites. Um deles é o da credibilidade que, na televisão, já não significa «verdade» só porque aparece por lá...

[Publicado en Avante]

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