A natureza da crise


Por incrível que pareça, não são poucos os economistas nativos, principalmente encastelados no chamado mercado financeiro, que sugerem abertamente a elevação dos juros, a redução dos salários e as demissões de trabalhadores, para evitar as pressões inflacionárias e reequilibrar os custos.

Eles pretendem aplicar no Brasil receitas idênticas às aplicadas nos Estados Unidos e na Europa para superar a crise em que literalmente afundaram. É interessante como alguns deles acreditam que a crise financeira foi superada, embora não possam dizer a mesma coisa da crise econômica. Separam uma da outra, como se isso fosse possível, e estão felizes porque aparentemente os bancos foram salvos.

Em outras palavras, não conseguem esconder que o Estado norte-americano duplicou seu endividamento para salvar seus bancos privados, e que o Banco Central Europeu assumiu as dívidas dos Estados europeus, enquanto as empresas estadunidenses e europeias demitem milhões de trabalhadores, na esperança de salvar-se do brutal estreitamento dos mercados e da contração dos investimentos.

Alguns supõem que os países capitalistas centrais enfrentam apenas problemas macroeconômicos. Garantindo taxas de câmbio mais favoráveis, as potências capitalistas poderiam elevar a competitividade de seus produtos e enfrentar com mais sucesso a concorrência dos produtos dos países emergentes. Os Estados Unidos, em especial, que possuem o poder de emitir o dólar simbólico como equivalente universal de troca, perseveram nesse golpe, mas os resultados têm sido fracos.

Isto porque, embora a taxa de câmbio desempenhe um papel importante na determinação dos preços, ela não está no epicentro da crise. É verdade que o valor da taxa de câmbio depende da relação entre aumento da produtividade e dos salários em um país, ou do custo unitário do trabalho, em relação aos demais países. Ou da relação entre a exploração da força de trabalho num país e os demais. Mas seu papel pode ser reduzido se o país não mais possui uma indústria diversificada e seu mercado depende fundamentalmente das importações de outros países.

Em tal caso, a falta de competitividade depende menos da taxa de câmbio do que da capacidade produtiva industrial do país, mesmo que a produtividade da indústria realmente instalada seja alta, representando uma alta extração ou exploração de mais-valia da força de trabalho empregada. Aqui não adianta muito flexibilizar as leis trabalhistas, coisa que o exército industrial de reserva já resolveu naturalmente, em especial nos Estados Unidos e na Inglaterra.

O problema, então, reside na desindustrialização levada a efeito pelos países capitalistas centrais, à medida que, pressionados pelo colapso da lucratividade, exportaram capitais para países agrários e agrário-industriais, industrializando-os com base em forças de trabalho muito mais baratas. Paralelamente, passaram a emitir dinheiro fictício aos borbotões, na forma de primes, subprimes, derivativos e uma miscelânea de papéis sem qualquer suporte em riqueza material.

Para manter a falsa impressão de bonança, os Estados Unidos e a Alemanha foram campeões no fornecimento de créditos para o consumismo desbragado. No caso da Alemanha, tanto para sua população quanto para as populações dos países europeus periféricos, levando gregos, portugueses, irlandeses etc. a suporem estar vivendo no melhor dos mundos.

Independentemente de esses países não terem rebaixado os salários, e do custo unitário do trabalho ter subido em relação ao da Alemanha, a taxa de câmbio interna ter se apreciado e das empresas terem perdido competitividade, o fato real consistiu em que sistema financeiro tinha interesse no endividamento de todos. Nada muito diferente do que ocorreu nos Estados Unidos. E, como lá, isso se traduziu em grandes dívidas impagáveis, ou bolhas de diferentes tipos.

Isso não significa que os capitalistas dos países centrais não se esforçarão para reduzir ainda mais os salários de seus trabalhadores e, com isso, elevar suas taxas de lucro. A depreciação da taxa de câmbio tem sido uma das formas tradicionais de fazer isso, distribuindo pelo conjunto da sociedade o custo do ajustamento, a exemplo do que estão fazendo os Estados Unidos. Mas a Europa, para desvalorizar o euro, teria que fazer uma reforma monetária, cujos impactos políticos parecem complexos.

Outra alternativa tradicional, como aponta Bresser Pereira, tem sido estimular uma inflação, que reduza os salários reais e aumente os salários nominais. Mas, com isso, a Alemanha perderia competitividade em relação à China e aos Estados Unidos. Nessas condições, a terceira alternativa, que está sendo adotada, é a da austeridade, que reduz os salários através da recessão e do desemprego.

Qualquer das três soluções é desumana. O peso de qualquer delas recai sobre os assalariados e as pequenas empresas, embora no momento a ira dos trabalhadores europeus e norte-americanos se volte contra a terceira e, também, contra o 1% mais rico. O pior de tudo, porém, é que a solução da atual crise econômica não depende do reequilíbrio dos custos unitários do trabalho. Ou seja, da redução dos salários.

No atual estágio de desenvolvimento técnico e científico do capitalismo, mesmo que os Estados Unidos e os países europeus reduzam salários, isto terá pouco efeito sobre a lucratividade empresarial. Os únicos países onde os salários ainda podem ser compatíveis com a necessidade de elevar as taxas dessa lucratividade são os países de baixos custos de força de trabalho da Ásia, África e América Latina.

Nessas condições, embora o capitalismo central possa momentaneamente recuperar um pouco de suas atividades econômicas, sua tendência de longo prazo é a de manter salários reduzidos e taxas crescentes de desemprego. E ver-se, cada vez mais, diante da competitividade dos novos países industrializados, em especial dos BRICS, cujo produto interno bruto somado já é maior do que o produto interno bruto das principais países capitalistas.

Essas modificações certamente terão implicações sobre o câmbio, e este continuará influenciando os custos do trabalho. No entanto, talvez seja conveniente levar em conta todas as demais tendências que a natureza da crise capitalista coloca em tensão. Afinal, estão em jogo a hegemonia dos Estados Unidos sobre o mundo, e a hegemonia da Alemanha sobre a maior parte da Europa. Convenhamos que, diante disso, as taxas de câmbio são apenas armas de pequeno calibre.


Artígo públicado no Correio da Cidadania