A mudança global para a direita
Muitas vezes o ignoramos em nossas discussões, mas a reeleição de Modi faz parte de uma mudança global para a direita que se está verificar. Netanyahu foi reeleito em Israel. Erdogan foi reeleito maciçamente na Turquia. O governo conservador voltou ao poder na Austrália contra todas as previsões em contrário. País após país da América Latina, onde a esquerda governou até recentemente, inflamando esperanças de um ressurgimento da esquerda também em outros lugares, têm agora governos de direita; o mais significativo e mais notório deles é no Brasil, onde o novo presidente, Jair Bolsonaro, é registado a defender o regime militar anterior e até a dizer que deveria ter matado mais algumas pessoas! E para coroar tudo isso, nas eleições de domingo passado na União Europeia, as quais se seguiram à contagem de votos na Índia na quinta-feira, houve uma mudança palpável para a direita.
Parece agora que o partido de extrema-direita de Marine Le Pen será o maior partido da França nestas eleições, à frente da aliança centrista do presidente Emmanuel Macron. E o partido de extrema direita do primeiro-ministro italiano, Matteo Salvini, não será apenas o maior da Itália, mas poderá até ser o maior partido do Parlamento Europeu, apenas superando o partido de Angela Merkel nesta posição. O partido de Merkel perdeu nove por cento dos votos em comparação a cinco anos atrás; e, dentro da própria Alemanha, o partido de extrema-direita, Alternative for Germany, aumentou sua fatia eleitoral para 10,5%. Na Hungria, o partido de Victor Orban também está pronto para nova vitória interna.
Apesar de a vitória de Modi obviamente se dever muito aos desenvolvimentos internos, não devemos esquecer o contexto global em que há uma mudança maciça para a direita. Quando há um movimento tão determinado para a direita, devemos fazer a pergunta: por que isso acontece? Os analistas burgueses liberais, em vez de verem a semelhança entre estes vários partidos e movimentos, tendem a ter uma imagem fragmentada da realidade: eles dividem os partidos europeus em pró-UE e anti-UE, ou pró-imigração e anti-imigração; da mesma forma, eles vêem a vitória de Modi como um fenómeno indiano, ligado ao Hindutva , mas desconectado do que está a acontecer na Europa. Mesmo a perspectiva de fortalecimento da reeleição de Donald Trump é vista isoladamente desses desenvolvimentos. Mas tal fragmentação liberal não servirá para a análise marxista, que busca padrões comuns e identifica o desdobramento das configurações de classe. O que podemos dizer, como marxistas, quanto a essa guinada para a direita por todo o mundo?
Ela é claramente a manifestação da crise económica que arrebata a economia mundial desde 2008. Houve sinais ocasionais de uma leve recuperação da mesma, mas logo que estes sinais surgiam, a economia mundial mais uma vez mergulhava numa crise. Na verdade, a analogia de uma bola a saltar no chão descreve muito bem a economia mundial: toda vez que a bola salta para cima há gritos de uma recuperação, os quais desaparecem quando a bola cai de volta ao chão.
Essa afirmação pode ser contestada pelo facto de que hoje a taxa de desemprego nos EUA é aparentemente mais baixa do que há décadas; mas a taxa de participação no trabalho também caiu em comparação com 2008. Se assumirmos hoje a mesma taxa de participação no trabalho do início de 2008, então a taxa de desemprego nos EUA de hoje seria de 8% e não 4%, que é o número oficial.
É neste contexto de crise e desemprego que há uma mudança para a direita em todo o mundo. Os partidos burgueses liberais têm geralmente estado em negação quando se trata da crise e do consequente desemprego. A direita pelo menos reconhece o sofrimento provocado pelo desemprego, embora não culpe o sistema, mas sim os imigrantes por ele e queira restringir a imigração. Uma vez que dentro da UE tem de haver livre migração de trabalhadores entre os países, muitos da direita também são anti-UE. Numa situação em que os partidos burgueses liberais negam a existência de crises e a esquerda é lenta em colocar uma agenda alternativa perante o povo, a direita tomou a iniciativa e avançou com sua agenda anti-imigração. Seu crescimento à escala mundial é, portanto, atribuível à tomada de consciência da crise e do desemprego, que os partidos políticos pró-establishment não têm.
Mas como é que o caso indiano se encaixa nisso? Mesmo na Índia, Modi chegou ao poder em 2014 com uma agenda de “desenvolvimento”. O facto é que a taxa de crescimento caira durante a UPA II , de modo que a promessa do neoliberalismo de melhorar o destino de todos começava a desaparecer. Uma vez no poder, o governo de Modi não fez literalmente nada para cumprir sua promessa de “desenvolvimento” ou “ vikas ”, razão pela qual nas eleições agora concluídas não pronunciou nem uma palavra sobre o assunto. Mas mudou o discurso para "combater o terrorismo", "garantir a segurança da nação", "ensinar uma lição ao Paquistão" e "instituir o Hindutva" , o qual convenientemente passava por alto perguntas incómodas como o que havia feito para promover o "desenvolvimento" os seus anos de poder.
Permanece no entanto o facto de que a mudança de um partido neoliberal como o do Congresso para um partido de direita como o BJP tornou-se possível devido à crise do neoliberalismo. O partido do Congresso não podia mais fingir que o neoliberalismo traria “desenvolvimento”. O BJP nada falou sobre “desenvolvimento” após um período inicial, mas mudou completamente o discurso, para grande satisfação da oligarquia corporativo-financeira (de modo que o Sensex [NR] subiu drasticamente quando a pesquisa previu a vitória do BJP).
Contudo, esta mudança no discurso terá apenas um efeito transitório. Nem o partido Congresso nem o BJP têm quaisquer pistas sobre como superar a crise do neoliberalismo e dar emprego a milhões de desempregados. De facto, uma secção do partido do Congresso pode ver a dificuldade de prosseguir o velho caminho neoliberal e é por isso que, nos seu manifesto eleitoral, havia referências ao NYAYA , um esquema de transferências para o quintil mais baixo da população. Mas este esquema que normalmente teria gerado muito entusiasmo e poderia até ter sido um divisor de águas para o partido do Congresso, provou ser um farsa porque não foram apresentadas quaisquer estimativas críveis de como o dinheiro seria levantado. As pessoas instintivamente sentiram que isto era apenas uma promessa eleitoral a ser quebrada na manhã seguinte após as eleições.
Mas assim como o partido do Congresso, centrista e liberal-burguês, não tem ideia de como avançar a economia, o BJP é igualmente ignorante. Seu tipo de “nacionalismo” em breve ficará desgastado. Não se pode manter o povo preso a uma dose diária de retórica anti-Paquistão e anti-muçulmana quando ele desempregado e faminto. Além disso, a situação económica não permanece paralizada. Mesmo que o governo de Modi não nada faça no reino da economia, a economia não deixará Modi em paz. A crise se agravará, com as dificuldades da recessão e da balança de pagamentos a tornarem-se cada vez mais agudas ao longo do tempo. E quando isso acontecer, o governo de Modi não terá respostas para isso (embora, naturalmente, nessa altura resgatar a economia teria de se tornar muito mais difícil).
Como nenhuma das formações neoliberais está a ser capaz de proporcionar uma resposta aos problemas materiais candentes do povo, apenas a esquerda é que pode ir além do capitalismo neoliberal. Só ela pode proporcionar uma saída para a crise, embora esta saída nos levasse, finalmente, para além do próprio capitalismo. Isto é verdadeiro não só na Índia como também no resto do mundo.
Estamos, em suma, a olhar para uma conjuntura histórica em que, por mais bem-sucedido que a direita possa ser no curto prazo a mobilizar o povo em torno de uma agenda falsa ou desagregadora, ela é basicamente incapaz de retirá-lo do actual estado de desemprego e desespero.
Há momentos na história de uma nação em que o sistema existente parece estável e capaz de uma vida longa; mas tudo isso muda rapidamente e novos momentos surgem quando o sistema simplesmente não pode continuar como antes. Para o capitalismo, agora é um momento destes, não apenas na Índia mas por todo o mundo. Não importa o quão bem-sucedida a direita possa ser eleitoralmente aqui e em outros lugares, ela não pode alterar este facto básico.
[NR] Sensex: índice da bolsa de valores de Bombaim.
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2019/0602_pd/global-shift-right
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
Parece agora que o partido de extrema-direita de Marine Le Pen será o maior partido da França nestas eleições, à frente da aliança centrista do presidente Emmanuel Macron. E o partido de extrema direita do primeiro-ministro italiano, Matteo Salvini, não será apenas o maior da Itália, mas poderá até ser o maior partido do Parlamento Europeu, apenas superando o partido de Angela Merkel nesta posição. O partido de Merkel perdeu nove por cento dos votos em comparação a cinco anos atrás; e, dentro da própria Alemanha, o partido de extrema-direita, Alternative for Germany, aumentou sua fatia eleitoral para 10,5%. Na Hungria, o partido de Victor Orban também está pronto para nova vitória interna.
Apesar de a vitória de Modi obviamente se dever muito aos desenvolvimentos internos, não devemos esquecer o contexto global em que há uma mudança maciça para a direita. Quando há um movimento tão determinado para a direita, devemos fazer a pergunta: por que isso acontece? Os analistas burgueses liberais, em vez de verem a semelhança entre estes vários partidos e movimentos, tendem a ter uma imagem fragmentada da realidade: eles dividem os partidos europeus em pró-UE e anti-UE, ou pró-imigração e anti-imigração; da mesma forma, eles vêem a vitória de Modi como um fenómeno indiano, ligado ao Hindutva , mas desconectado do que está a acontecer na Europa. Mesmo a perspectiva de fortalecimento da reeleição de Donald Trump é vista isoladamente desses desenvolvimentos. Mas tal fragmentação liberal não servirá para a análise marxista, que busca padrões comuns e identifica o desdobramento das configurações de classe. O que podemos dizer, como marxistas, quanto a essa guinada para a direita por todo o mundo?
Ela é claramente a manifestação da crise económica que arrebata a economia mundial desde 2008. Houve sinais ocasionais de uma leve recuperação da mesma, mas logo que estes sinais surgiam, a economia mundial mais uma vez mergulhava numa crise. Na verdade, a analogia de uma bola a saltar no chão descreve muito bem a economia mundial: toda vez que a bola salta para cima há gritos de uma recuperação, os quais desaparecem quando a bola cai de volta ao chão.
Essa afirmação pode ser contestada pelo facto de que hoje a taxa de desemprego nos EUA é aparentemente mais baixa do que há décadas; mas a taxa de participação no trabalho também caiu em comparação com 2008. Se assumirmos hoje a mesma taxa de participação no trabalho do início de 2008, então a taxa de desemprego nos EUA de hoje seria de 8% e não 4%, que é o número oficial.
É neste contexto de crise e desemprego que há uma mudança para a direita em todo o mundo. Os partidos burgueses liberais têm geralmente estado em negação quando se trata da crise e do consequente desemprego. A direita pelo menos reconhece o sofrimento provocado pelo desemprego, embora não culpe o sistema, mas sim os imigrantes por ele e queira restringir a imigração. Uma vez que dentro da UE tem de haver livre migração de trabalhadores entre os países, muitos da direita também são anti-UE. Numa situação em que os partidos burgueses liberais negam a existência de crises e a esquerda é lenta em colocar uma agenda alternativa perante o povo, a direita tomou a iniciativa e avançou com sua agenda anti-imigração. Seu crescimento à escala mundial é, portanto, atribuível à tomada de consciência da crise e do desemprego, que os partidos políticos pró-establishment não têm.
Mas como é que o caso indiano se encaixa nisso? Mesmo na Índia, Modi chegou ao poder em 2014 com uma agenda de “desenvolvimento”. O facto é que a taxa de crescimento caira durante a UPA II , de modo que a promessa do neoliberalismo de melhorar o destino de todos começava a desaparecer. Uma vez no poder, o governo de Modi não fez literalmente nada para cumprir sua promessa de “desenvolvimento” ou “ vikas ”, razão pela qual nas eleições agora concluídas não pronunciou nem uma palavra sobre o assunto. Mas mudou o discurso para "combater o terrorismo", "garantir a segurança da nação", "ensinar uma lição ao Paquistão" e "instituir o Hindutva" , o qual convenientemente passava por alto perguntas incómodas como o que havia feito para promover o "desenvolvimento" os seus anos de poder.
Permanece no entanto o facto de que a mudança de um partido neoliberal como o do Congresso para um partido de direita como o BJP tornou-se possível devido à crise do neoliberalismo. O partido do Congresso não podia mais fingir que o neoliberalismo traria “desenvolvimento”. O BJP nada falou sobre “desenvolvimento” após um período inicial, mas mudou completamente o discurso, para grande satisfação da oligarquia corporativo-financeira (de modo que o Sensex [NR] subiu drasticamente quando a pesquisa previu a vitória do BJP).
Contudo, esta mudança no discurso terá apenas um efeito transitório. Nem o partido Congresso nem o BJP têm quaisquer pistas sobre como superar a crise do neoliberalismo e dar emprego a milhões de desempregados. De facto, uma secção do partido do Congresso pode ver a dificuldade de prosseguir o velho caminho neoliberal e é por isso que, nos seu manifesto eleitoral, havia referências ao NYAYA , um esquema de transferências para o quintil mais baixo da população. Mas este esquema que normalmente teria gerado muito entusiasmo e poderia até ter sido um divisor de águas para o partido do Congresso, provou ser um farsa porque não foram apresentadas quaisquer estimativas críveis de como o dinheiro seria levantado. As pessoas instintivamente sentiram que isto era apenas uma promessa eleitoral a ser quebrada na manhã seguinte após as eleições.
Mas assim como o partido do Congresso, centrista e liberal-burguês, não tem ideia de como avançar a economia, o BJP é igualmente ignorante. Seu tipo de “nacionalismo” em breve ficará desgastado. Não se pode manter o povo preso a uma dose diária de retórica anti-Paquistão e anti-muçulmana quando ele desempregado e faminto. Além disso, a situação económica não permanece paralizada. Mesmo que o governo de Modi não nada faça no reino da economia, a economia não deixará Modi em paz. A crise se agravará, com as dificuldades da recessão e da balança de pagamentos a tornarem-se cada vez mais agudas ao longo do tempo. E quando isso acontecer, o governo de Modi não terá respostas para isso (embora, naturalmente, nessa altura resgatar a economia teria de se tornar muito mais difícil).
Como nenhuma das formações neoliberais está a ser capaz de proporcionar uma resposta aos problemas materiais candentes do povo, apenas a esquerda é que pode ir além do capitalismo neoliberal. Só ela pode proporcionar uma saída para a crise, embora esta saída nos levasse, finalmente, para além do próprio capitalismo. Isto é verdadeiro não só na Índia como também no resto do mundo.
Estamos, em suma, a olhar para uma conjuntura histórica em que, por mais bem-sucedido que a direita possa ser no curto prazo a mobilizar o povo em torno de uma agenda falsa ou desagregadora, ela é basicamente incapaz de retirá-lo do actual estado de desemprego e desespero.
Há momentos na história de uma nação em que o sistema existente parece estável e capaz de uma vida longa; mas tudo isso muda rapidamente e novos momentos surgem quando o sistema simplesmente não pode continuar como antes. Para o capitalismo, agora é um momento destes, não apenas na Índia mas por todo o mundo. Não importa o quão bem-sucedida a direita possa ser eleitoralmente aqui e em outros lugares, ela não pode alterar este facto básico.
[NR] Sensex: índice da bolsa de valores de Bombaim.
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2019/0602_pd/global-shift-right
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .