O espectro do incumprimento

O espectro do incumprimento
Os trabalhadores nos países periféricos não têm obrigação de aceitar a austeridade durante um futuro indefinido a fim de resgatar a Eurozona

Quanto a crise da Eurozona irrompeu no princípio de 2010, um relatório RMF identificou três opções estratégicas para países periféricos. Eram elas: primeiro, a austeridade imposta pelo núcleo e a transferência dos custos de ajustamento para a sociedade como um todo; segundo, uma vasta reforma estrutural da Eurozona em favor do trabalho e, terceiro, a saída da Eurozona acompanhada do incumprimento (default), mudando assim o equilíbrio social em favor do trabalho.  Não surpreendentemente, a política preferida dos governos da Eurozona - às ordens do FMI - foi a austeridade. Houve também algumas reformas, todas elas na direcção neoliberal, como foi discutido nos capítulos 3 e 4. Este rumo da acção é coerente com a natureza da Eurozona e a ideologia neoliberal arraigada no seu cerne. E não é de surpreender que a segunda opção tenha encontrado pouca receptividade, tanto nas discussões oficiais como na decisão política. A natureza da crise exigiu medidas imediatas que deixavam pouco espaço para iniciativas de reforma a longo prazo, além da dificuldade inerente de reforma a Eurozona em favor do trabalho. Na verdade, a Eurozona tornou-se ainda mais conservadora durante este período.

No entanto, como a política de austeridade tem-se difundido, a ideia do incumprimento da dívida pública também tem feito progresso significativo. A austeridade é um caminho altamente tormentoso para as economias tanto da periferia como do núcleo, como mostrado no capítulo 4, a qual pode mesmo piorar o problema do endividamento. Nos mercados financeiros globais é geralmente esperado que a Grécia, pelo menos, incorrerá em incumprimento no futuro. Têm sido ouvidas vozes dentro da corrente dominante a afirmar que a austeridade pode ser um beco sem saída, particularmente para a Grécia, e portanto favorecendo uma reestruturação controlada da dívida pública.  No extremo radical do espectro político na Grécia e alhures houve também apelos ao incumprimento. É provável que mesmo governos tenham considerado a possibilidade, embora em gabinetes hermeticamente selados.

O capítulo de conclusão deste relatório trata do incumprimento e renegociação de dívida tendo em vista a análise anterior. Uma vez que o incumprimento inevitavelmente levanta a questão da condição de membro da Eurozona, a possibilidade de saída por parte de países periféricos é também considerada. O centro da discussão reside na economia política destas opções, todas as quais envolvem mudanças sociais complexas e diferentes conjuntos de vencedores e perdedores, tanto internamente como internacionalmente. Não é fácil afirmar que é no interesse dos trabalhadores na periferia, para não mencionar os do núcleo. A abordagem aqui adoptada é que se o caminho do incumprimento, renegociação e saída for encetado, ele deveria levar a uma mudança no equilíbrio social em favor do trabalho. Da mesma maneira, deveria romper o jugo do conservadorismo e do neoliberalismo na Eurozona.

A discussão abaixo é efectuada sob as rubricas do incumprimento conduzido pelo credor e conduzido pelo devedor. Distinguir entre os dois é útil a fim de verificar os interesses sociais envolvidos no incumprimento, renegociação e saída. O incumprimento conduzido pelo credor é provável que seja um caminho político conservador que ainda imporia os custos do ajustamento aos trabalhadores, enquanto deixaria inalterada a natureza subjacente da Eurozona. O incumprimento conduzido pelo devedor, em contraste, poderia trazer benefícios significativos para países periféricos, ao mesmo que tempo criaria espaço para mudar o equilíbrio social em favor do trabalho. O incumprimento conduzido pelo devedor coloca imediatamente a questão da saída da Eurozona, convidando portanto à análise das implicações para a economia e a sociedade.

Incumprimento, renegociação e saída são discutidos abaixo sobretudo na medida em que isto se aplicasse a um único país periférico. É natural fazer esta suposição, uma vez que as pressões da crise têm sido esmagadoramente mais pesadas na Grécia quando esta é comparada a outros países periféricos. A Grécia tem estado na linha de fogo da crise da Eurozona e é provável que permaneça nessa posição no futuro previsível. Mas mesmo apenas para propósitos analíticos, ainda teria sido necessário fazer a suposição de que o incumprimento, renegociação e saída ocorreriam num único país. Só então o equilíbrio de forças sociais, as alavancas da política económica e o contexto económico internacional poderiam ser considerados como um dado com algum grau de precisão.

Não é preciso dizer que, se estes acontecimentos decisivos ocorressem num país periférico, haveria grandes repercussões no resto da Eurozona. Em primeiro lugar, o que se aplica individualmente à Grécia aplica-se também individualmente à Espanha e a Portugal (e provavelmente à Irlanda, embora não seja considerada neste relatório). Há diferenças significativas entre os três, como ficou estabelecido no corpo deste relatório, mas a sua situação como países periféricos da Eurozona é semelhante. Se um deles adoptasse o incumprimento, renegociação e saída, o efeito demonstração junto aos outros seria grande. Cada um naturalmente abordaria a questão a partir da sua própria perspectiva social, política e institucional, mas a compulsão económica subjacente seria semelhante. A narrativa pode ser contada basicamente para a Grécia, mas a Espanha e Portugal nelas também se reconhecerão.

Deveria finalmente ser mencionado que incumprimento, renegociação e saída, no limite, conduzem à fractura, ou mesmo ao colapso, da Eurozona como um todo. É impossível analisar com alguma credibilidade as repercussões de um evento tão cataclísmico, pode-se apenas declarar que os custos tanto para a periferia como para o núcleo seriam grandes. Contudo, mesmo este resultado seria em última análise o resultado da natureza da Eurozona-exploradora, desigual e muito mal juntada. A falha não residiria nos países periféricos e sim com a união monetária como um todo, a qual colocou a periferia numa situação impossível. Os trabalhadores nos países periféricos não têm obrigação de aceitar a austeridade durante um futuro indefinido a fim de resgatar a Eurozona. Além disso, se a Eurozona entrou em colapso sob o peso dos seus próprios pecados, levantar-se-ia a oportunidade de colocar as relações entre os povos da Europa sobre uma base diferente. A solidariedade e a igualdade entre os povos europeus certamente seriam possíveis, mas elas requerem iniciativas enraizadas no terreno. A Eurozona na sua forma actual é uma barreira para este desenvolvimento.