George Soros e a presente conjuntura

George Soros e a presente conjuntura
Os fundamentos epistémicos de capitalismo militam contra qualquer rota de acção que seja ditada por considerações "humanitárias"

O bilionário George Sores lançou nervosismo nos mercados financeiros ao sugerir que uma nova crise está iminente nas finanças mundiais. Num discurso recente a um think-tank, ele sublinhou que a saída do capital financeiro do terceiro mundo é provável que prenda estas economias num ciclo de desvalorizações da taxa de câmbio e austeridade. E ele mencionou especificamente a União Europeia que enfrenta uma "crise existencial" devido a três factores:   sua desintegração territorial exemplificada pelo Brexit; a austeridade e a crise de refugiados. A solução por ele sugerida para a Europa é tipicamente keynesiana e incluía um novo Plano Marshall que a UE como um todo deveria adoptar para com a África de modo a estancar o seu fluxo de refugiados para a Europa.

As visões individuais de um George Sores não têm interesse para nós. Mas os factores para os quais ele chamou a atenção, tais como os EUA a sugarem capital financeiro do resto do mundo, especialmente do terceiro mundo; a valorização do dólar; o assomar da crise para o terceiro mundo; o problema dos refugiados para a Europa (o qual, embora Soros não o diga, equivale a afirmar que quem semeia ventos colhe tempestades) e as diferenças UE-EUA sobre o Acordo Nuclear com o Irão as quais também têm implicações económicas; estão todos em conjunto a pressionar o capitalismo mundial para uma crise grave, a qual, como financeiro arguto, ele reconhece – embora o establishment liberal burguês não o reconheça.

Soros não é economista e não explica como exactamente actuariam os vários factores que considera acossarem o capitalismo contemporâneo a fim de provocar a crise financeira que adverte. Mas a sua intuição é importante especialmente porque ele próprio é um capitalista retinto e não um revolucionário socialista que está intelectualmente habituado a encarar a transitoriedade do capitalismo.

A solução que apresenta, de um novo Plano Marshall para a África a ser operado pela UE, não é uma ideia nova. Soluções semelhantes têm sido apresentadas no passado a partir da tradição keynesiana. O Plano Marshall original, pode-se recordar, trouxe assistência dos EUA a uma Europa devastada após a Segunda Guerra Mundial a fim de recolocar aquelas economias em pé. A escala da assistência do Plano Marshall original tem sido estimada, aos preços de hoje, em torno dos US$110 mil milhões. O que Soros sugeriu para um Plano Marshall Europeu nos dias de hoje é uma assistência com um custo da ordem dos US$35 mil milhões para a África. Trata-se de uma medida keynesiana porque estimularia a procura agregada na economia mundial (e dentro da própria Europa se a assistência proposta estivesse ligada ao gasto só de bens europeus), mesmo quando provoca maiores investimentos e gastos sociais no interior de uma parte subdesenvolvida do mundo.

A sugestão mais famosa nesta linha foi avançada pela Comissão Brandt para o mundo capitalista avançado como um todo: eles deveriam por de lado uma parte do seu PIB a fim de transferi-lo para os países pobres como doação (grants). Isto, argumentou-se, ajudaria ambos os conjuntos de países, os primeiros através de maior emprego e produção, pois sofrem de uma deficiência da procura agregada, e os últimos através de maiores recursos pois sofrem de escassez de recursos para empreenderem investimentos ou gastos sociais.

A lógica deste esquema está no facto de que tais transferências não diminuiriam a disponibilidade de bens e serviços no mundo capitalista avançado, mas ao invés aumentariam esta disponibilidade. A razão para isso é como se segue: bens que não são procurados numa economia capitalista não são produzidos, resultando na existência de desemprego e capacidade inutilizada. Agora suponha-se que um valor de 100 rupias seja transferido para o terceiro mundo, então, para produzir estes bens, trabalhadores terão de ser empregados; para produzir os inputs exigidos para produzi-los no valor de 100 rupias, e com o consumo de bens procurados pelos trabalhadores recém empregados, mais trabalhadores terão de ser empregados, e assim por diante. Portanto algo como, digamos, bens no valor de 400 rupias terão de ser novamente produzidos, dos quais 300 rupias serão consumidas dentro do mundo capitalista avançado e 100 rupias transferidas para o exterior.

O emprego, a produção e o consumo neste segmento portanto aumenta em consequência da transferência, e não diminui, em comparação com a situação original. Dito de modo diferente, tais transferências constituem um jogo de "soma não zero"; uma situação de capacidade inutilizada e desemprego é aquela a partir da qual todos podem ser beneficiados, se houver um aumento da procura agregada, a qual, de acordo com o argumento de Willy Brandt, teria decorrido das transferências para os países pobres. O que Brandt sugeriu para os países avançados em relação aos países pobres é exactamente o que agora está a ser sugerido por Soros para a Europa em relação à África.

Contudo, a sugestão da Comissão Brandt caiu em ouvidos totalmente moucos, e o mesmo está a acontecer com a sugestão de Soros, porque o capitalismo não funciona deste modo. Não é um sistema que possa ser moldado como plasticina para se conformar a algum princípio de racionalidade social, pois, se o fizesse, então não teríamos o espectáculo absurdo, como o que temos hoje, da sua prática de "austeridade", a qual é uma redução da procura, em meio a uma recessão. De facto, o próprio Keynes, o qual estava ansioso por salvar o sistema da ameaça socialista, confundiu sua natureza fundamental, a qual é restringir todas as transferências, pois elas supostamente "estragariam" os beneficiários. A lógica do sistema, como o contemporâneo mais jovem de Keynes, Michael Kalecki, economista marxista, observou de modo incisivo é que "você deve ganhar o seu pão com o suor do seu rosto a menos que por acaso tenha meios privados". Isto foi a lógica utilizada para negar assistência a uma Grécia assolada por dívida. E de uma União Europeia que não pôde sequer salvar um dos seu próprios membros, a Grécia, dificilmente se pode esperar que faça transferências para a África, não importa quão "racionais" tais transferências possam se mostrar para todas as partes.

A época em que o Plano Marshall original foi adoptado era totalmente diferente, quando o capitalismo estava de costas contra a parede, forçado a fazer concessões contra as quais normalmente teria combatido com unhas e dentes. Havia uma ameaça socialista que pairava, com a União Soviética, a qual havia vencido a Alemanha nazi, no pico do seu prestígio e popularidade. E a classe trabalhadora inquietava-se por mudanças, como evidenciaram as eleições britânicas a seguir à guerra em que Churchill e os conservadores foram derrotados. Ao mesmo tempo, o capitalismo fora enfraquecido pela própria guerra e não estava em posição de combater uma outra guerra, contra o socialismo. Foi neste contexto que foi obrigado a fazer ajustamentos ao seu modus operandi normal. Os EUA ajudarem a reconstruir a Europa foi um ajustamento para salvar o mundo da ameaça do socialismo.

De facto, o Plano Marshall foi uma das muitas concessões que tiveram de ser feitas para salvar o sistema. A intervenção do Estado na "administração da procura" através de meios orçamentais, para trazer estas economias mais próximas ao pleno emprego, a qual fora evitada antes da guerra, e que foi evitada subsequentemente sob o neoliberalismo, teve de ser aceite para impedir que a inquietação da classe trabalhadora assumisse uma forma revolucionária. A descolonização política, a qual Churchill e seus semelhantes se opuseram totalmente, teve de ser concedida (muito embora a descolonização económica, no sentido de o terceiro mundo obter controle sobre os seus próprios recursos, exigisse um novo e ainda mais árduo combate). Da mesma forma, o direito de voto universal, a que até então resistira, teve de ser concedido. Tudo isto, que indirectamente foi a contribuição da União Soviética para os povos do mundo, mas quase nunca reconhecida, ocorreu dentro daquela conjuntura particular.

Entretanto, aquela conjuntura hoje já não existe. Muito embora o capitalismo esteja em meio de uma crise profunda, e quanto a isto Soros está certo, ele actualmente não está a enfrentar quaisquer perspectivas de um derrube iminente pelas forças do socialismo. E mesmo se assim fosse, não está suficientemente devastado pela guerra para preferir fazer concessões a tomar uma postura agressiva. Um Plano Marshall Europeu para a África é uma fantasia ilusória neste contexto. De facto, o capitalismo europeu deixaria de preferência refugiados afogarem-se no Mar Mediterrâneo, preferiria apoiar ditadores militares na África que impedissem suas populações de fugirem para o exterior e estabeleceriam antes seus próprios postos avançados em países africanos para impedir tal emigração para a Europa, do que ajudaria estes países fornecendo-lhes concessões para o seu desenvolvimento. Os fundamentos epistémicos de capitalismo militam contra qualquer rota de acção que seja ditada por considerações "humanitárias".

 

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