Finanças fogem do Terceiro Mundo
Actualmente há um êxodo das finanças do terceiro mundo, cuja escala excede em muito a que se verificou após a crise financeira de 2008
Actualmente há um êxodo das finanças do terceiro mundo, cuja escala excede em muito a que se verificou após a crise financeira de 2008. Ainda mais importante do que o fluxo de saída real é a vontade de parte das finanças de abandonar o terceiro mundo, incluindo mesmo os chamados "mercados emergentes", e mover-se para o US dólar ou activos denominados em dólar. Isto resulta numa depreciação de um conjunto de divisas do terceiro mundo em relação ao dólar, dentre as quais a rupia indiana é um exemplo óbvio.
Isto é paradoxal à primeira vista. Afinal de contas, agora os EUA são o país no epicentro da crise do coronavírus. Por que é que as finanças haveriam de querer fugir para os EUA? Mas exactamente a mesma coisa havia acontecido na época da crise financeira de 2008. Muito embora os EUA estivessem no centro da crise, e os países do terceiro mundo tivessem sido pouco afectados directamente pelo colapso da bolha imobiliária americana, o dólar valorizou-se em relação a uma série de moedas do terceiro mundo, uma vez que as finanças fugiram destes países.
Este paradoxo aponta para uma realidade mais profunda acerca da economia mundial: sempre que as finanças estão nervosas, o seu "instinto de voltar para casa" afasta-as do terceiro mundo, particularmente para os EUA. Existe, em suma, uma assimetria fundamental na economia mundial do ponto de vista das finanças, razão pela qual o terceiro mundo abrir-se ao vórtice dos fluxos financeiros globais é absolutamente insensato.
Esta falta de vontade das finanças de permanecer no terceiro mundo, ou de se mudar para ele, está a prejudicar a capacidade de vários países para pagar as suas importações e para pagar o serviço da sua dívida externa. Na contagem mais recente, 102 países abordaram o FMI em busca de apoio financeiro a fim de ultrapassar a crise. Os EUA, que têm uma voz importante no FMI, querem no entanto que esse organismo discrimine entre países em matéria de acomodação. Assim, ao governo Maduro, na Venezuela, foi negado pelo FMI um empréstimo mesmo no meio desta pandemia.
Os próprios EUA desenvolveram uma disposição altamente discriminatória: uma "linha de swap" que permite ao Federal Reserve Board (Fed) dos EUA ceder dólares a bancos centrais de determinados países em troca de moeda local, sendo os dólares reembolsados em data posterior juntamente com um juro sobre o empréstimo. Tais linhas de swap foram desenvolvidas no momento da crise de 2008 e agora foram ressuscitadas. O Fed abriu linhas de swap ilimitadas a cinco bancos centrais da metrópole, o Banco Central Europeu, o Banco de Inglaterra, o Banco do Japão, o Banco do Canadá e o Banco Nacional Suíço; e também estendeu linhas de swap limitadas a outros nove países: Austrália, Nova Zelândia, Singapura, Brasil, México, Coreia do Sul, Suécia, Dinamarca e Noruega. Estas linhas de swap, no entanto, dão aos EUA o poder de decidir quem recebe assistência durante a crise e quem não recebe, uma disposição claramente odiosa.
Contra isto tem havido uma exigência de que o FMI emita Direitos Especiais de Saque (DES) e que os atribua de acordo com o poder de voto dos vários países. Estes DES aumentarão as reservas cambiais dos países membros, sem qualquer discriminação entre eles além da que já existe sob a forma de direitos de voto diferenciados. Mas os EUA obviamente se opõem a este movimento, com o argumento ostensivo de que qualquer emissão de novos DES não ajudará muito os países pobres, pois 70% destes iriam para os países avançados e apenas 3% para a categoria dos mais pobres. Ao invés disso, favorecem o estabelecimento de uma facilidade especial (como após o choque petrolífero) destinada a prestar assistência aos países pobres.
No entanto, existem três diferenças óbvias e cruciais entre qualquer disposição deste tipo e uma nova emissão de DES. Em primeiro lugar, a concessão de empréstimos a partir de tal dispositivo será necessariamente discriminatória, ao passo que os DES não o serão (para além do que já está estabelecido na estrutura de votação do FMI). Em segundo lugar, qualquer empréstimo concedido com base numa tal facilidade terá de ser reembolsado juntamente com um custo dos juros, ao passo que os DES não exigem qualquer reembolso. Terceiro, precisamente porque tem de ser reembolsado, qualquer empréstimo tomado de uma tal facilidade especial atrairá as odiosas "condicionalidades" do FMI, ao contrário dos DES.
É por estas razões que na reunião do comité de finanças do FMI houve um apoio esmagador a uma nova emissão de DES. A oposição veio dos EUA, como era previsível, e da Índia. O governo Hindutva da Índia, que proclama "hiper-nacionalismo" e que está ocupado a prender activistas de direitos civis e todos aqueles que falam em favor dos pobres como "anti-nacionais", não perde nenhuma oportunidade de se prostrar perante os EUA; e fê-lo novamente na reunião do comité de finanças do FMI, lançando os interesses dos povos do terceiro mundo, assim como do próprio povo da Índia, pelo cano abaixo.
A luta por uma nova emissão de DES para superar a crise do coronavírus, e contra qualquer discriminação entre países, como exigido pelos EUA, terá que ser intensificada. Ao mesmo tempo, porém, não se deve cair na ideia de que os DESs resolverão os problemas enfrentados pelos países do terceiro mundo no contexto da crise actual. A mera acumulação de reservas por estes países através de novos DES não deterá a fuga de capitais que agora se verifica. Afinal, a Índia tem actualmente quase meio trilião de dólares de reservas cambiais, mas isso não impediu um fluxo de saída financeiro da Índia, nem uma depreciação da taxa de câmbio da rupia em relação ao dólar.
Os novos DES numa tal situação serão usados apenas para financiar a fuga de capitais dos países pobres do terceiro mundo, sem ajudar na sua batalha contra o coronavírus. Não há dúvida de que a sua posição estará melhor com novos DESs do que sem eles; mas os novos DES apenas adiarão o colapso das suas economias sem deixar nada para apoiar o povo durante o combate contra o vírus.
Para isto, duas medidas adicionais serão necessárias: em primeiro lugar, uma moratória sobre todos os pagamentos da dívida externa durante pelo menos um ano; e em segundo, controles de capital impostos por estes países para deter a saída das finanças. Se estas duas medidas adicionais forem impostas, então todo o divisas estrangeiras adicionais que vierem através dos DES poderão ser utilizadas para pagar importações adicionais necessárias. Nesse caso, um múltiplo da divisa estrangeira disponibilizada pode ser gasto pelo governo de cada país para administrar um défice orçamental a fim de combater o coronavírus e proporcionar socorro às pessoas sujeitas à aflição da pandemia. Por outras palavras, os DES não aumentam a capacidade do governo de gastar um montante igual para si próprio; permitem ao governo gastar um múltiplo do seu valor na forma de um défice orçamental.
Um exemplo numérico esclarecerá este último ponto. Em qualquer economia, a soma dos défices dos três sectores, o sector governamental, o sector privado e o resto do mundo, deve sempre somar zero. Comecemos por uma situação em que os DES são adquiridos por um país. Agora, se 300 DES forem disponibilizados a este país e se todo ele está disponível para financiar importações adicionais (vamos assumir, por simplicidade, que as exportações permanecem inalteradas, assim como o investimento privado) e se o rácio das importações em relação ao rendimento adicional gerado é de 15% e da poupança privada em relação ao rendimento adicional gerado é de 25%, então o governo, com base nestes 300 DES, pode gerir um défice orçamental com valor igual a 800 DES. Com este défice orçamental de 800 DES, 2000 DES serão o rendimento adicional, dos quais 300 DES serão o valor das importações adicionais, as quais podem ser atendidas com os novos DES disponibilizados ao país.
O director-geral do FMI manifestou-se a favor de uma nova emissão de DES, até os EUA sabotarem a operação. Mas os DES só por si não ajudariam muito se não houvesse uma moratória sobre os pagamentos da dívida externa e controles de capital para conter as saídas financeiras.
O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2020/0426_pd/exodus-finance-third-world
Actualmente há um êxodo das finanças do terceiro mundo, cuja escala excede em muito a que se verificou após a crise financeira de 2008. Ainda mais importante do que o fluxo de saída real é a vontade de parte das finanças de abandonar o terceiro mundo, incluindo mesmo os chamados "mercados emergentes", e mover-se para o US dólar ou activos denominados em dólar. Isto resulta numa depreciação de um conjunto de divisas do terceiro mundo em relação ao dólar, dentre as quais a rupia indiana é um exemplo óbvio.
Isto é paradoxal à primeira vista. Afinal de contas, agora os EUA são o país no epicentro da crise do coronavírus. Por que é que as finanças haveriam de querer fugir para os EUA? Mas exactamente a mesma coisa havia acontecido na época da crise financeira de 2008. Muito embora os EUA estivessem no centro da crise, e os países do terceiro mundo tivessem sido pouco afectados directamente pelo colapso da bolha imobiliária americana, o dólar valorizou-se em relação a uma série de moedas do terceiro mundo, uma vez que as finanças fugiram destes países.
Este paradoxo aponta para uma realidade mais profunda acerca da economia mundial: sempre que as finanças estão nervosas, o seu "instinto de voltar para casa" afasta-as do terceiro mundo, particularmente para os EUA. Existe, em suma, uma assimetria fundamental na economia mundial do ponto de vista das finanças, razão pela qual o terceiro mundo abrir-se ao vórtice dos fluxos financeiros globais é absolutamente insensato.
Esta falta de vontade das finanças de permanecer no terceiro mundo, ou de se mudar para ele, está a prejudicar a capacidade de vários países para pagar as suas importações e para pagar o serviço da sua dívida externa. Na contagem mais recente, 102 países abordaram o FMI em busca de apoio financeiro a fim de ultrapassar a crise. Os EUA, que têm uma voz importante no FMI, querem no entanto que esse organismo discrimine entre países em matéria de acomodação. Assim, ao governo Maduro, na Venezuela, foi negado pelo FMI um empréstimo mesmo no meio desta pandemia.
Os próprios EUA desenvolveram uma disposição altamente discriminatória: uma "linha de swap" que permite ao Federal Reserve Board (Fed) dos EUA ceder dólares a bancos centrais de determinados países em troca de moeda local, sendo os dólares reembolsados em data posterior juntamente com um juro sobre o empréstimo. Tais linhas de swap foram desenvolvidas no momento da crise de 2008 e agora foram ressuscitadas. O Fed abriu linhas de swap ilimitadas a cinco bancos centrais da metrópole, o Banco Central Europeu, o Banco de Inglaterra, o Banco do Japão, o Banco do Canadá e o Banco Nacional Suíço; e também estendeu linhas de swap limitadas a outros nove países: Austrália, Nova Zelândia, Singapura, Brasil, México, Coreia do Sul, Suécia, Dinamarca e Noruega. Estas linhas de swap, no entanto, dão aos EUA o poder de decidir quem recebe assistência durante a crise e quem não recebe, uma disposição claramente odiosa.
Contra isto tem havido uma exigência de que o FMI emita Direitos Especiais de Saque (DES) e que os atribua de acordo com o poder de voto dos vários países. Estes DES aumentarão as reservas cambiais dos países membros, sem qualquer discriminação entre eles além da que já existe sob a forma de direitos de voto diferenciados. Mas os EUA obviamente se opõem a este movimento, com o argumento ostensivo de que qualquer emissão de novos DES não ajudará muito os países pobres, pois 70% destes iriam para os países avançados e apenas 3% para a categoria dos mais pobres. Ao invés disso, favorecem o estabelecimento de uma facilidade especial (como após o choque petrolífero) destinada a prestar assistência aos países pobres.
No entanto, existem três diferenças óbvias e cruciais entre qualquer disposição deste tipo e uma nova emissão de DES. Em primeiro lugar, a concessão de empréstimos a partir de tal dispositivo será necessariamente discriminatória, ao passo que os DES não o serão (para além do que já está estabelecido na estrutura de votação do FMI). Em segundo lugar, qualquer empréstimo concedido com base numa tal facilidade terá de ser reembolsado juntamente com um custo dos juros, ao passo que os DES não exigem qualquer reembolso. Terceiro, precisamente porque tem de ser reembolsado, qualquer empréstimo tomado de uma tal facilidade especial atrairá as odiosas "condicionalidades" do FMI, ao contrário dos DES.
É por estas razões que na reunião do comité de finanças do FMI houve um apoio esmagador a uma nova emissão de DES. A oposição veio dos EUA, como era previsível, e da Índia. O governo Hindutva da Índia, que proclama "hiper-nacionalismo" e que está ocupado a prender activistas de direitos civis e todos aqueles que falam em favor dos pobres como "anti-nacionais", não perde nenhuma oportunidade de se prostrar perante os EUA; e fê-lo novamente na reunião do comité de finanças do FMI, lançando os interesses dos povos do terceiro mundo, assim como do próprio povo da Índia, pelo cano abaixo.
A luta por uma nova emissão de DES para superar a crise do coronavírus, e contra qualquer discriminação entre países, como exigido pelos EUA, terá que ser intensificada. Ao mesmo tempo, porém, não se deve cair na ideia de que os DESs resolverão os problemas enfrentados pelos países do terceiro mundo no contexto da crise actual. A mera acumulação de reservas por estes países através de novos DES não deterá a fuga de capitais que agora se verifica. Afinal, a Índia tem actualmente quase meio trilião de dólares de reservas cambiais, mas isso não impediu um fluxo de saída financeiro da Índia, nem uma depreciação da taxa de câmbio da rupia em relação ao dólar.
Os novos DES numa tal situação serão usados apenas para financiar a fuga de capitais dos países pobres do terceiro mundo, sem ajudar na sua batalha contra o coronavírus. Não há dúvida de que a sua posição estará melhor com novos DESs do que sem eles; mas os novos DES apenas adiarão o colapso das suas economias sem deixar nada para apoiar o povo durante o combate contra o vírus.
Para isto, duas medidas adicionais serão necessárias: em primeiro lugar, uma moratória sobre todos os pagamentos da dívida externa durante pelo menos um ano; e em segundo, controles de capital impostos por estes países para deter a saída das finanças. Se estas duas medidas adicionais forem impostas, então todo o divisas estrangeiras adicionais que vierem através dos DES poderão ser utilizadas para pagar importações adicionais necessárias. Nesse caso, um múltiplo da divisa estrangeira disponibilizada pode ser gasto pelo governo de cada país para administrar um défice orçamental a fim de combater o coronavírus e proporcionar socorro às pessoas sujeitas à aflição da pandemia. Por outras palavras, os DES não aumentam a capacidade do governo de gastar um montante igual para si próprio; permitem ao governo gastar um múltiplo do seu valor na forma de um défice orçamental.
Um exemplo numérico esclarecerá este último ponto. Em qualquer economia, a soma dos défices dos três sectores, o sector governamental, o sector privado e o resto do mundo, deve sempre somar zero. Comecemos por uma situação em que os DES são adquiridos por um país. Agora, se 300 DES forem disponibilizados a este país e se todo ele está disponível para financiar importações adicionais (vamos assumir, por simplicidade, que as exportações permanecem inalteradas, assim como o investimento privado) e se o rácio das importações em relação ao rendimento adicional gerado é de 15% e da poupança privada em relação ao rendimento adicional gerado é de 25%, então o governo, com base nestes 300 DES, pode gerir um défice orçamental com valor igual a 800 DES. Com este défice orçamental de 800 DES, 2000 DES serão o rendimento adicional, dos quais 300 DES serão o valor das importações adicionais, as quais podem ser atendidas com os novos DES disponibilizados ao país.
O director-geral do FMI manifestou-se a favor de uma nova emissão de DES, até os EUA sabotarem a operação. Mas os DES só por si não ajudariam muito se não houvesse uma moratória sobre os pagamentos da dívida externa e controles de capital para conter as saídas financeiras.
O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2020/0426_pd/exodus-finance-third-world