Ó mãe, mola a tona!


Muitas vezes tenho ouvido dizer que a celticidade dos celtas é uma questão lingüística. Também tenho ouvido dizer que, como não se pode conhecer a língua que falavam aqueles galaicos submetidos polos romanos, não podiam ser celtas. Curioso argumento a contrario. Como não posso demonstrá-lo então nego-o, veementemente claro, e calificando, tal vez, de celtoides aos que defendam o contrário.

Animado polo artigo que hai meses publicou neste lugar A.Lago, sentim vontade de mergulhar no nosso património lingüístico para ver se podia achar termos de procedência céltica evidente, além dos já conhecidos por todos (berço, bico, carvalho, croio, gándara...) e que deverom chegar aqui pola salutífera acção da romanização... E digo isto porque, se estes termos célticos, admitidos por todos, não demonstram que houve celtas no nosso território então não sei que poderia demonstrá-lo. Ainda assim, com grave risco de descrédito e a pesar da “incontestável verdade oficial” (que nunca houve celtas na Galiza), seguim adiante nas minhas pescudas.

Neste texto (e tal vez noutros futuros) pretendo amostrar que na nossa língua hai um certo número de palavras comuns ̶̶ diferentes das tradicionalmente enumeradas ̶ , reputadas de “latinórios” ou com “origem desconhecida”, às que podemos dar uma origem céltica. Ainda mais, especificamente do grupo de línguas gaélicas. A irmandade do galaico e as línguas dos gaedel ou gaeles salta à vista quando um procura informação nos dicionários ou gramáticas.

Na minha opinião, estas amostras não são apenas uma camada de substrato entre outros substratos ̶ como se vem repetindo num eficiente exercício de escolástica ̶ senão que atinge a um nivel de fala coloquial e “popular” desde etapas antiquíssimas e até a actualidade.

A seguir imos estabelecer uma lista limitada a cinco termos galegos e gaélicos (escoceses, preferentemente) para estabelecer a relação de proximidade, tal vez de identidade co galaico. Exemplos que “saltaram” aos meus olhos sem eu os procurar.

Caso 1. nai, mãe, mai. Estas formas para designar à progenitora são variedades dialectais de diversas áreas e normas do nosso idioma. A primeira (nai) é uma variante ocidental da Galiza e a normativa para o ILGa, a segunda (mãe) é a estándar do português, a terceira (mai) é uma variante oriental da Galiza. Hipotéticamente todas três procedem do latim MATRE(M). Das três formas, é “nai” a de mais difícil explicação desde o latim, pola presença do ene em vez de eme. Mas, ainda com todo, as outras duas não são fáceis de justificar e há de se botar mão a fenómenos pouco claros. “mai” e “mãe” necessitariam de perder o erre (cousa que não é fácil nem comum) e o -t- poderia sonorizar em -d-. No melhor dos casos obteriamos a forma “made” ou a do espanhol “madre”, que sim se justifica a partir do termo latino, mesmo a andaluza “mare”. O mais difícil é justificar por quê “mãe” leva til e se pronuncia o “a” nasal. Tal vez um capricho dos nosso vizinhos? Não. Eis a justificação.

A palavra gaélica bean (mulher) tem uma declinação irregular com um nominativo plural “mnai”. A que lhes soa? Esta forma, por si só, justifica todas as variantes. Se um procura pronunciar a palavra comprovará que ou predomina o m– inicial, ficando a forma mai, ou predomina o n– inicial, ficando a forma nai. Para “mãe” não há mas que intentar manter ambas nasais que “contaminam” a vogal de nasalidade, daí o til sobre o a (ã). O ligeiro inconveniente de que seja plural não é insalvável ao se estabelecer o –s como marca de plural na latinização.

Caso 2. mola. É uma voz que todos reputamos como moderna e de âmbitos marginais ou juvenis. Nada mais longe da realidade. A sua antigüidade há de ser muito significativa. Vejamos por quê.

O verbo modelo utilizado nalgumas gramáticas actuais do gaélico irlandês é molan, cujo subxuntivo tem como forma mola. O subxuntivo conjuga-se assim: mola me, mola te, mola e... E do significado? Pois exactamente o que lhe damos nós: gostar. Surpreendente, não?

Os termos me, te e e são os pronomes persoais de primeira, segunda e terceira persoas... Sem comentários!

Caso 3. tona. Se consultarmos diversos dicionários galegos (ver o dicionário de dicionários do Ilg: http://sli.uvigo.es/ddd/index.html), acharemos que, em todos eles, o termo é equivalente a nata. Mas também á superfície que se forma noutros líquidos (água, licores...) ou nas papas. Também designa a casca das cebolas ou das árvores, monda. Também significa superfície (ex.: fazer sair um assunto à tona). Em definitiva, a capa mais exterior e superficial de algo.

Vejamos agora que nos diz o dicionário de gaélico escocês de MacBain da palavra equivalente:

«tonn:
skin, Irish tonn, hide, skin, Early Irish tonn, skin, surface, Welsh tonn, cutis, Breton tonnenn, rind, surface, hair of the head: tunnâ, skin, hide.
[tadução: pel. Irlandês tonn, coiro, pel. Ir. Temporão: pel, superficie. Galês tonn: cute…» (as negras são minhas)]

Acho que não faz falta mais detalhe. A identidade de significado e a escassa diferença na forma (apenas um morfema feminino, para ajustá-lo ao sistema do romance) permitem deduzir o estreitíssimo parentesco.

Caso 4: banha / baña. Nos dicionários galegos (dic. de dicionários do Ilga) a definição mais habitual é gordura ou graxa de alguns animais, especialmente a de porco ainda que na maioria dos casos definido em espanhol (!). A banha é a graxa derretida do porco, de cor branca e textura suave, que se utilizava para frigir quando o azeite era uma delicatesse.
J.Corominas (dic. crítico y etimológico castellano e hispánico) relaciona-o com um hipotético *banwia, derivado do termo do irlandês antigo banb (porco), cujo significado seria o “adjectivo” porcino. Para proceder deste termo teria que deixar de se pronunciar o “w” primeiro para depois palatalizar-se a nasal por contacto com o i (semigoval iode). Demasiadas suposições hipotéticas para o meu entender.

O equivalente gaélico que proponho tem aproximadamente a mesma pronuncia [banhe] mas a sua escrita, bainne, difere um bocado por rações ortográficas do gaélico. O seu significado é leite. O termo está relacionado com o conceito branco (bain, em gaélico). O sentido de “gordura branca” serve tanto para o leite como para a manteca, do porco ou de qualquer outro animal.

Caso 5: então / entón. No Corominas fai-se proceder dum latim vulgar *INTUNCE (ou seja uma forma inventada ad hoc), composto de IN (em) e um termo do latim arcaico (!!!) *TUNCE donde teria saído o latim TUNC. Como pode ver-se a explicação é retorcida. A palavra é um termo suposto do denominado latim vulgar (ou seja do que não há textos, pois seria oral, basicamente) constituído de dous termos... Um deles latim arcaico, nada menos!. Tal vez seja a adequada para o espanhol entonces, ainda que a influência do latim nas classes cultas (as que escreverom sempre) pode ser a causa da “conservação” do “c” final da forma espanhola pronunciado como k e evoluída a seguir a “-ce”.

Que temos no gaélico escocês? Pois uma combinação muito simples. A palavra tan, co significado de tempo, combinado com o artigo: an. Daí an-tan com o significado de num tempo... então! Sem necessidade de supor nem inventar nada. O primeiro a ainda se pronuncia assim na fala. O passo do segundo a a o na sílaba final não é muito difícil de explicar. Lembre-se que o o do sufixo –om (no galego é aberto) e ademais daria justificação ao remate –ão do português, cuja origem não fica muito claro (outra cousa é que o rei Afonso II a impugesse na escrita, mas para o impor tinha já que existir na fala).
Como não quero amolar con tanto celtoideo e, para amostra, creo que são bastante estes cinco termos, deixo-o aqui por hoje. Acho que com isto hai suficiente para reflexionar longa e detidamente. Outros muitos termos poderiam ajustar-se a este paradigma, mas isso... para outra ocasião.