O coronavírus e a atividade agropecuária

O coronavírus e a atividade agropecuária
Começarei por uma declaração, suponho amplamente aceitada mas muitas vezes esquecida, que vem lembrar, sobre todo nos tempos que correm, que a atividade agropecuária é uma das fontes indispensáveis de subministração de alimentos, sem os quais o ser humano não pode subsistir, o que a converte num setor estratégico. Muitas mortes no mundo são devidas a essa falta de alimentos, sobre tudo em amplas zonas do globo terráqueo afetadas pela pobreza, como consequência da exploração e o colonialismo.

Por causa das medidas de confinamento adotadas para fazer fronte à crise sanitária ocasionada pelo vírus SARS-Cov-2, origem da enfermidade conhecida como COVID-19, esta máxima pus-se de manifesto, ficando clara a importância que tem o setor agroalimentar para o conjunto da sociedade. Assim pudemos comprovar como o primeiro que fez a cidadania foi proceder a se aprovisionar dos produtos que considerava mais essenciais, alguns com lógica e outros mais irracionalmente, entre os que se encontravam todo tipo de alimentos.

Precisamente, nestes momentos, estão-se a escutar muitas vozes dando relevo a importância da produção agroalimentar como sustento básico da sociedade, mas não devemos esquecer que desde este setor, na Galiza e nomeadamente no lácteo, já se levam muitos anos reclamando um trato justo sem que até o momento se tenha recebido uma resposta favorável. O que nos leva a fazer a seguinte pergunta; Depois de superada a primeira fase de confinamento, ajudará a sensibilidade atual a mudar algo a situação em favor dos nossos setores produtivos?

Desde o meu ponto de vista para vislumbrar uma possível resposta a esta pergunta antes teremos de nos perguntar que função desempenha a atividade agropecuária dentro do sistema produtivo geral. E esta função vai vir determinada pelo modelo económico no que esteja inserida. Assim de fazer parte de uma economia capitalista tenderá a ser considerada como uma atividade empresarial mais para fazer negócio, na maior parte das vezes desprovida do seu caráter social, e muitas vezes empregada como arma para dominar e controlar tanto a povoações como a países. Pela contra se a produção agropecuária fazer parte dum sistema económico mais social, ou se se quer socialista, a sua função terá de ser focada como parte integrante da soberania nacional, como garante da soberania alimentar, cumprindo o papel de subministrar alimentos básicos à sociedade da que faz parte, mas também saudáveis, seguros e de qualidade.

Determinados feitos dos que temos constância vêm mostrar que os interesses especulativos, próprios do sistema capitalista, no que estamos incluídos, são os que estão a prevalecer. Alguns exemplos sirvam para apoiar esta opinião.

Uma mostra chamativa é o que está a passar com os mercados agroalimentares de proximidade. Nestes momentos a atividade destes mercados está totalmente proibida, quando menos na Galiza e noutras zonas do Estado, porém parece que na Ctalaunya não é assim. A informação procedente, inicialmente, tanto do Ministério de agricultura espanhol como da Conselharia do Meio Rural, resultou contraditória. O 19 de março o Ministério publicava uma nota na que se podia ler textualmente que a produção agroalimentar, assim como a sua comercialização fazem parte da cadeia de abastecimento alimentar e a sua atividade deve ser garantida. Por sua parte a Conselharia, esse mesmo dia, divulgava outra nota, depois do conselheiro manter uma videoconferência com o ministro, na que manifestava que o conselheiro lhe transmitiu ao ministro que entendia era possível permitir a celebração dos mercados municipais com os produtos agroalimentares básicos, sempre que se respeitaram as distâncias de segurança. Em dias anteriores alguns concelhos da Galiza já proibiram a sua celebração, entanto outros mantinham-nos, com Alhariz. O 24 de março o DOG publica uma Ordem que regula estes mercados, assim como o deslocamento das pessoas que realizem atividades agropecuárias. Ordem que proíbe expressamente este tipo de mercados até o 31 de março, posteriormente, o próprio 31, a Conselharia emite uma Resolução onde resolve manter a proibição.

Perante de todas estas circunstâncias as organizações agrárias FRUGA e SLG emitiram um comunicado conjunto pedindo que se permitira a sua celebração por considerar que estes mercados, aplicando as normas de segurança estabelecidas pelas autoridades sanitárias para evitar a propagação do COVID-19, são mais seguros que os supermercados e hipermercados por celebrar-se ao ar livre e em espaços abertos, por não haver intermediários entre produção e consumo, e porque a maior parte dos produtos comercializados são produtos nos que não se empregam conservantes químicos ou refrigerantes.

Posteriormente promoveu-se um manifesto, neste sentido, ao que se somaram mais de 50 entidades e organizações, no que, entre outras coisas, se denunciava o trato discriminatório a favor das grandes áreas comercias, tipo hipermercado e supermercados, assim como a situação indefensável na que ficaram toda as pessoas às que se lhes privava, pertencendo ao sector primário, seguir exercendo a sua principal atividade económica sem que, naquele momento, se tiveram habilitado medidas de apoio.

Duas notícias recentes vêm pôr em evidência o que vimos de dizer. Uma delas informa-nos de as ações da empresa Walmart Stores, a empresa de supermercados mais extensa dos USA, subiram em 10,93% este passado mês de março ao tempo que as suas lojas se enchiam de gente comprando para fazer fronte a epidemia do coronavírus; O que não terão ganhado aqui empresas como Gadis, Mercadona, e outras grandes áreas. E agora para fechar o círculo como alternativa desde as Administrações oferece-se-lhe, ao sector produtor, comercializar os seus produtos a traves destas grandes cadeias de comercialização como Gadis, El Core Ingles, Eroski, Carrefour ou Alcampo. Sobram comentários.

Um outro setor onde, de novo, se põem de manifesto a prevalência dos interesses especulativos sobre os sociais é o lácteo. Como resposta inicial a uma possível situação de desabastecemento assistimos a um incremento da procura de produtos lácteos, entre outros. Em resposta a esta procura a cadeia de supermercados Lidl, acrescentou a sua compra de leite líquido, neste mês de março, em 23% respeito do mesmo mês do ano passado, ao tempo que empresas lácteas como Lactalis e Celta vêm de ameaçar com baixadas de 3 cêntimos por cada litro recolhido nas granjas, e outras como Reny Picot e Naturleite pretendem modificar as condições dos contratos que têm comprometidos com o setor produtor, reduzindo a sua duração, passando de um ano a três meses, com a clara intenção de baixar o preço depois de transcorridos estes três meses. Neste caso todo parece indicar que a regra do mercado capitalista, que nos vem a dizer que a mais procura maior preço, deixou de funcionar, ou não, segundo quem o mire. Desde logo para a transformação e a distribuição as contas dão certas, não assim para o setor produtor.

E não se deve esquecer que esta situação de crise inicialmente sanitária, agora já com implicações socioeconómicas, no que tem a ver com os setores agropecuários, esteve imediatamente precedida de mobilizações nas que se reclamava preços justos para as suas produções.

A partir das experiências recentemente vividas há quem pensa que a sociedade está mais sensibilizada, e pelo tanto é mais consciente da procedência dos alimentos que consome e valora os produtos de proximidade frente aos que têm de percorrer grandes distâncias, às vezes milhares de quilómetros, para chegar a mesa, ademais das implicações que este modelo tem para o meio ambiente e o câmbio climático, mas também há quem estima que o preço dos alimentos vão sofrer porque o poder de compra da maior parte da povoação vai-se ver muito afetado.Estes breves apontamentos podem ajudar a reflexionar sobre o papel que pode e deve cumprir a atividade agropecuária no futuro pós-crise, a respeito da sua influência sobre o meio ambiente e o câmbio climático ou a relação entre o espaço rural e o urbano, ou sobre as condições de vida no rural. Em definitiva, há que aproveitar a ocasião para trazer ao primeiro plano do debate o conceito de soberania alimentar, entendida como instrumento que tem por objetivo subministrar alimentos sadios, seguros, de qualidade e respeitosos com o meio ambiente a toda a povoação, garantindo um nível de vida digno ao setor produtor, a partir do desenho de uma política agrária própria, primando a função social sobre critérios economicistas, e no que as relações comerciais de intercâmbio internacional estejam baseadas no respeito mútuo entre iguais.