Falar não é escrever

Falar é a maneira natural e necessária de expressão para uma língua. Sem esse meio de se converter em algo real, perceptível, uma língua ficaria no interior dos seus falantes, ainda que não inactiva, claro, pois pensamos, sonhamos mesmo sentimos numa língua.
De feito os primórdios da língua, quando meninhos, apreendemo-los de escoitar outros a falarem. Dessa escoita o aprendiz vai armazenando sons e estabelecendo relações entre diversos elementos, tecendo o sistema de signos que chamamos língua.
Primeiro repetem sons, inconscientes do sentido. Ba-ba-ba…; ma-ma-ma…; ta-ta-ta … soem ser os primeiros ensaios. Após a interacção com os seus próximos (ao “dizer” ma-ma-ma a mulher que me aleita aparez, “pensa” a criança) apreende que pronunciar certas combinações de sons tem efeito nos próximos.
Quando a rede de relações tem certa entidade então o individuo começa a falar e a fazer-se compreender. Mas ainda fica muito por apreender. Todos conhecemos o difícil que é inculcar nos meninhos as irregularidades dessa rede de relações que constituem as línguas.
Anos e anos de uso e interacção irám aperfeiçoando a rede na mente do utente, enchendo de possibilidades expressivas o seu inicial sistema limitado. Esse sistema, ao que chamamos língua, converte-se em infinito (porque não tem límites definidos) sempre em expansão e sempre deixando atrás elementos, ainda que tão lentamente que é muito difícil sermos conscientes. Esse sistema tem um núcleo duro, dificilmente alterável, e outros elementos menos permanentes.
A parte menos variável dum idioma são a ordem das palavras na cadea falada, a conjugação verbal, os pronomes e o seu uso, as formas do plural e singular, as formas do xénero… Isto é, os elementos que definem um idioma. A pronuncia, o sotaque, o vocabulário, mesmo os sons do sistema são elementos muito menos importantes á hora de comparar um sistema com outro para identificá-los ou diferenciá-los.,
NÃO CONFUNDIR LINGUA COM ESCRITA
Todo esse processo do que falei tem-se repetido milheiros de milhões de ocasiões no decurso do tempo da nossa espécie. Incluídos os humanos actuais. Durante milhões de anos os seres humanos apreenderam a falar a sua lingua por este mecanismo. Mas, até hai apenas 5000 anos, que se saiba, os seres humanos não sentiram a necessidade de representar a sua fala. É então quando nasce a escrita.
É sabido que hai diversas formas de se representar a fala: os quípus andinos (nós em cordas), debuxos de objectos para representar a palabra que os designa como os hieroglifos, dessenhos estilizados como os ideogramas chineses (derivados dos hieroglifos) ou isso que chamamos letras que, no fundo, não são outra cousa que desenhos estilizados para representar sons. Todos eles são mecanismos arbitrários de representar os sons lingüísticos, quer dizer, “escrita”.
Claro que nem todas as “letras” correspondem ao mesmo sistema de representação. Existem silabários, alfabetos e sistemas mixtos que combinam signos silábicos e signos alfabéticos. Estes sistemas de representação são, obviamente, arbitrários e por tanto, intercambiáveis.
Não é bom nem adequado confundirmos Língua-fala com escrita, porque de aí surgem erros de apreciação e análise. Para pormos um exemplo. A partitura duma canção é ininteligível para a maioria da gente porque não sabem “ler” esse sistema de representação, ainda que conheçam bem a canção. Com a escrita passa algo similar, mas o sistema de escolarização inculca (quase grava a lume) a ideia de que escrita e fala são duas fazes da mesma moeda. Nada mais falso.
Ponhamos um exemplo. Os sons que pronunciamos em “sol” poderiam representar-se de muitas maneiras, uma delas a mesma de acima: sol. Mas também pode representar-se segundo o alfabeto cirílico (o do russo, do búlgaro…)assim: coʎ. Ainda poderiamos escrevê-lo com o sistema de letras do árabe, que decorre de direita a esquerda: سول
Poderiamos intentâ-lo com outros sistemas gráficos: rúnico, kopto, fenício-púnico, ogámico, tartéssico… Em fim, cada cultura e sociedade tem desenvolvido ou adaptado sistemas gráficos diversos, tão arbitrários uns como os outros. A afirmação tão repetida de que um sistema de escrita é mais exacto do que outro não é mais que uma convenção de tipo ideológico.
Ainda mais, utilizando o mesmo sistema de signos, o alfabeto latino por exemplo, os mecanismos internos de cada sistema gráfico podem variar consideravelmente. Diversas línguas do nosso entorno europeu que utilizam o alfabeto latino para a escrita, compartem connosco um som como o “x” de peixe (chamado técnicamente “fonema consonántico fricativo linguo-palatal xordo” e representado polos lingüistas por /ʃ/), mas os mecanismos de representação variam significativamente. No inglés escreve-se –sh– para o representar, (shop), mas também pode representar-se com –s– (sure). O francês serve-se do –ch– (cheval). No alemão adoita-se utilizar –sch– (Schumacher). No italiano empregam –sci– , como no nome de Sciascia que se pronuncia como “xaxa”… e assim para adiante. Com estes exemplos fica claro que a correspondência entre som e escrita não é necessária nem sistemática. Está sujeita a motivações de índole cultural, histórica, ideológica…
No caso concreto do nosso idioma (eu chamo-o galego) existem, hoje e desde o Rexurdimento, dous sistemas gráficos para o representar. Um é o histórico que, com numerosos ensaios e variações, vem desenvolvendo o seu papel desde a origem da escrita do idioma (sem interrupção no território independente do domínio lingüístico que chamam Portugal e, também, Brasil, etc.). O outro é um desenvolvimento, a partir da escrita do espanhol, iniciado no século XIX e “consagrado” polas Normas Ortográficas e Morfológicas da Língua Galega em 1982.
A escolha dum ou outro sistema é, certamente, ideológica. Para mim asumir o modelo, gráfico neste caso, do espanhol é asumir a colonização no elemento fundacional da nacionalidade galega: a língua.