Dona Antónia Ferreira

Muitos galegos conhecem o vinho do Porto "Ferreira", nome comercial que se pede assím nas lojas e garrafeiras para os interessados neste produto. Porém, um bocadinho de protagonismo no sucesso deste produto também tem um galego, don Pedro Gil Gargamalla (Galiza 1750-1838) quem, segundo as referências que possuem no arquivo da casa Ferreira, é "um galego (nunca se lhe chama espanhol) estabelecido na Régua, pelo menos desde 1783". Pedro Gil é o avô materno de dona Antonia, que recebe o cognome de Ferreira pelo pai. A localidade da Régua é a verdadeira capital mercantil e comercial dos vinhos do Porto (vinhos licorosos) e do Douro (vinhos de mesa). Péso da Régua é uma pequena cidade ribeirinha do rio Douro, geológicamente assente sob uma falha tectónica denominada "falha Régua-Verín". Que tinhamos os galegos relações de trabalho com a Região Demarcada do Douro é de velho conhecimento. Já no Livro Tombo do Mosteiro de Celanova reflite-se a emigração temporaria de centos de galegos destas comarcas ourensãs para as vindimas no Douro, em toda a centuria do século XVIII, que fizera que a obtenção de estes rendimentos de trabalho situassem à comarca como a segunda mais povoada da Galiza a seguir-se a da Estrada. Em 1823, na Quinta das Figueiras, em Numão, no concelho de Vila Nova de Foz Côa, planta uma vinha António Bernardo Ferreira (tio de dona Antonia) "onde trabalha diariamente uma empreita de mais de 100 galegos" A arrebatadora paisagem duriense, moldurada de socalcos, poderiamos dizer que é também paisagem moldurada por maõs de obra galegas.
Do galego Pedro Gil destaca o seu caracter arrojado para os negócios, sendo que, muito antes que a sua netinha (Antónia Adelaide) casara com um Ferreira, já don Pedro mantinha parcerias e sociedades com os Ferreira, concretamente com António Bernardo Ferreira, que sería posteriormente tio e sogro de dona Antonia, ao casar esta com um filho dele. José Bernardo Ferreira e António Bernardo Ferreira são irmãos. José é o pai de dona Antónia e António é tio. Como já se avançou, dona Antónia casa com um primo de sangue (o filho do tio António, também chamado António, como o pai) e nela se juntam os patrimónios e fortunas do avô galego, ademais da linha ascendente do pai e tio. Com 23 anos, a filha única de José Bernardo Ferreira casa com António Bernardo Ferreira II, um ano mais novo e também ele filho único. O casamento dos primos parece vir coroar a estreita convivência familiar e a cooperação empresarial que, nos últimos anos aproximara os "Ferreiras da Régua". Elegante, culto e cosmopolita, o marido, António Bernardo II apenas permanece casado com Antónia 10 anos, pois falece prematuramente com 32 anos, mas á frente de um considerável património joga um papel crucial num momento chave de afirmação das novas elites liberais. De carácter excêntrico e políglota conquista para a família Ferreira um lugar de destaque no meio da aristocracia portuense.
Já viuva, dona Antónia, lança-se a maior aventura empresarial que uma mulher podería emprender no Douro em pleno s. XIX. Há quem considere esse legado como um testemunho indiscutível do seu génio empresarial, na linha das histórias de sucesso dos "homes e mulheres feitos a sí mesmos" do século XIX, neste caso mais espectacular por se tratar de uma mulher. Porém, nesta pequeninha introdução a vida da "ferreirinha", não e difícil perceber que a fortuna de Dona Antónia não nasceu do nada. Duas vezes viúva (o segundo casamento foi com o seu administrador) a lição que tiramos da sua vida foi que alargou o património recebido das duas casas em herança; o vasto legado dos Ferreiras da Régua, além do seu avô, o galego (sempre nomeado assim nos arquivos e pelo povo) Pedro Gil Gargamalla. Dona Antónia não se limitou a gerir a fortuna recebida por herança. Con verdadeira paixão pelo Douro, assumiu, contra a tendência absentista dominante também na fidalguía rural galega e duriense de abandono do espaço rural nos finais do XIX, os benefícios e os custos da vivência rural simples e, ao mesmo tempo, com uma visão larga, investiu em grande e com sentido de modernidade na região, com a cual se identificou, sem esperar pela proteção ou apoio do Estado. Bem diferente ao acontecido hoje com os empresarios atuais galegos (olhe-se o caso da Pescanova). Não se limitou a ser a "viúva Ferreira", como aconteceu com outras mulheres do seu tempo que prosseguiram a actividade empresarial dos respectivos maridos. Afirmou-se como Dona Antónia, a "ferreirinha" e, no final da sua vida, a galego-descendente era uma das maiores fortunas de Portugal, num sector, ainda hoje, dominado por homens.
Além do negócio do vinho, a Ferreirinha ficou na memória dos durienses pelo seu lado filantrópico ao auxiliar a lavradores arruinados e ajudar a edificar diversas obras sociais. Altiva com os poderosos, caridosa com os pobres, empreendedora e arrojada, foi pretexto para uma série de TV (RTP), que deveria ser visionada pelo público da Galiza, se calhar quando o senhor Mariano Rajoy seja expulso pelas elites de Madrid por não ser precissos os seus miserábeis serviços para a causa imperial espanhola.
Resta agora uma investigação pendente. Quem era o galego Pedro Gil Gargamalla? Porquê emigrou para o Douro? Onde nasceu e viveu anteriormente Don Pedro? Se calhar foi um galego emigrante trabalhador na construção dos socalcos do Douro, ou uma pessoa deslocada temporáriamente para as vindimas e que decidiu ficar naquele País Vinhateiro?
Quando em Lisboa ouçam, com despreço, chamar aos do Norte como "ferreiras" agora perceberam o porquê. E também perceberão que os galegos temos um cheirinho a "ferreiras".