De rainhas e celtas

Muitos livros se têm editado no mundo a falar do misterioso, enigmático mesmo mágico assunto dos celtas. No nosso entorno também não são poucos os volumes dedicados a esta matéria. Ainda em datas recentes tivem ocasião de ler uma carta ao director no “Faro de Vigo” em que alguém respondia a outrém, com vocabulário algo ríspido, sobre a existência ou não de tais senhores nos nossos pagos.
Resulta inquietante tanta dedicação e veemência num assunto tão do “passado”. Ás vezes creio que os detratores do “celtismo” vem nos celtistas uns sonhadores perigosos que idealizamos esse mundo “desaparecido” como uma espécie de ilha de Avalão onde sermos felizes para sempre. E pode que os haja, não negarei que ha muito sonhador no mundo.
Pola contra eles são muito científicos e apenas avaliam dados. Mas resulta curioso que a história dos povos celtas esteja artelhada sobre supostos não demostrados como a famosa, hipotética e permanentemente citada invasão dos celtas desde oriente. Máxime se temos em conta a máxima latina ex oriente lux e que eles repressentam as brumas... dessa Avalão sonhada. Ainda ressulta mais curiosa a tese porque as fontes históricas, isto é, escritas, por gregos, dizem o contrário: que os celtas sempre estiveram em ocidente, junto ao Oceano.
Os romanos, por boca de Cato, exprimiram a sua política exterior: Delenda esse Carthago. Que deixa ás claras qual a sua política com os vizinhos incómodos: Varra-se do mapa toda memória. Nunca houve tal cousa e se houve acabamos com ela. E assim se procedeu também com os celtas.
No que respeita aos celtas, não ha mistério nenhum. Há uma deliverada ocultação que dura dous milénios. Mesmo sem Roma, muitos académicos estám dispostos a certificar aquilo que desde as aulas têm absorvido sem o menor sentido crítico e, por sua vez, transmitem.
As explicações da história não são, como todos sabemos ainda que com frequencia o esqueçamos, mais do que uma visão própria dum tempo e duma ideologia. Os galegos somos vítimas permanentes desta maneira de “fazer história” (fazer história! o termo é bem eloquente, por mais que não reparemos no significado). Da perspectiva de hoje, os galegos somos objecto, como muito sujeito passivo, do decorrer dos tempos. Na Galiza nunca passou nada segundo as “fontes oficiais” e as escolas historiográficas que as utilizam, manipulam e reelaboram quando não as criam.
Os celtas, assim em geral, som uma matéria facilmente manejável e, precissamente por esse tratamento geral, doada de substraer-se a uma análise pormenorizada. Não há celtas. Há gauleses (galos da Gália), gálatas, britanos, scotos... mesmo podem reconhecer-se aí na meseta de Espanha uns celtas chamados genéricamente celtíberos... mas isso é tudo. Celta, celta,... o de Vigo. Na Galiza nada de celtas, como muito galaicos. Uns tipos peculiares.
Nem um risco céltico na lingua (já temos falado nisso noutras ocasiões). Tudo é latim. Até as cousas mais inverossímeis e retorcidas na explicação etimológica. Também não há arte propriamente celta, porque celta é um concepto lingüístico. E a inexisténcia duma língua anula todo o pedido celta. Sem língua não há celtas. E na Galiza foram os romanos (esses que varreram Carthago do mapa) quem se encargaram de erradicar qualquer forma de vida lingüística. Em trescentos anos! Vaia máquinas! Isso si que é eficiência, não os espanhois. Ainda há categorias de Impérios.
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E das crenças, relatos, mitos, música? Nada é celta, por suposto. E dos usos sociais? Das relações interpersoais? Nada de nada.
Como muito as peculiaridades características deste recanto do mundo, tão peculiar por sua vez, são apenas isso, peculiaridades. Não encaixam no modelo tradicional de desenhar a cosmovissão, logo não merecem ser estudadas. Estám na margem do mundo oficialmente consagrado. São algo assim como ocupas mal tolerados aos que, por vezes, se acossa para que não molestem mais do necessário.
Contodo, no que respeita ao nosso país (e a tantos outros países), esta estrutura, este construto teórico tem tantas fírgoas e tantos rebocos para tapá-las que a pouco que se trabalhe sobre ela ficam á vista.
E aqui queria chegar. Nos passados dias tivem a fortuna de ler um trabalho, e-editado em 2011, de dona Maria do Rosário Ferreira, professora da Universidade de Coimbra, quem analisando a história medieval (documentada por ingente quantidade de documentos escritos) desde uma perspectiva diferente à habitual no edifíco teórico da historiografia (a feminina) alcançou a ver o que dezenas de análises não conseguiam ver. Ou, melhor, viam mas não conseguiam explicar com as fórmulas predeterminadas. E por isso tergiversavam.
No seu trabalho «Entre conselho e incesto: a irmã do rei»[1], Maria do Rosário Ferreira alcança uma conclussão surpreendente para quem se conforma com a perspectiva habitual: é à mulher –não a qualquer mulher mas a certas mulheres nas quais reside um carisma régio–, que cabe legitimar com a sua preferência o homem destinado à realeza.
E, desde aí, é capaz de dar conta de muitos dos “mistérios” da sucessão real nos séculos IX a XI no ocidente peninsular (esse que chamam reino de Astúrias e, despois, de Leão). Ela perfila com claridade e a partir da documentação, que transmite confusamente os feitos por não lhes encaixarem no paradigma masculino-romano, uma progressiva transformação de práticas arcaicas de transmissão de poder e património com base matrilinear num sistema dinástico de fundamentação patrilinhagística. E o seu proceder é absolutamente académico.
Em nenhum momento, é claro, pois seria pouco académico, a autora vincula estas práticas a um costume céltico ou, mais exactamente, gaélico. Contodo, os ecos da história da rainha Mebd de Conaugth (uma “rainha-loba”) resoam constantemente pois ela é o protótipo da mulher que transmite o exercício do poder real aos seus sucessivos companheiros (esposos, amantes...). O facto de que o relato irlandês seja considerado mítico não minimiza a coincidência. Ao contrário, eleva-a ao nível de feito cultural digno de memorização e aceitação colectiva. E parez estar aínda vigente no século XI na realeza da Galiza (que adoitam chamar reino de Leão) e mesmo pervive no século seguinte no novo reino de Portugal, no tempo em que Vermudo Peres de Trava intenta fazer valer a autoridade da sua mulher Urraca, filha de dona Teresa (os três na ilustração), contra o filho, Afonso Henriques. Fracassou mas o mesmo intento é uma clara vindicação dum costume ancestral e nosso.
Nada, fóra dum contexto, fóra dum paradigma adequado, pode ser avaliado como algo diferente duma peculiaridade. E nós somos demasiado peculiares.
[1] Maria do Rosário Ferreira, «Entre conselho e incesto: a irmã do rei», e-Spania [Online], 12 | décembre 2011, posto online no dia 19 Dezembro 2011, http://e-spania.revues.org/20879 ; DOI : 10.4000/e-spania.20879
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