O problema com a esquerda indiana

O problema com a esquerda indiana

O problema actual com a esquerda indiana, e nesta expressão incluo todas as secções da esquerda, desde a chamada "esquerda parlamentar" até à chamada "esquerda revolucionária", é na minha opinião a sua falta de apreciação da dialéctica entre "reforma" e "revolução". Tem havido muitas críticas da esquerda indiana, mas que eu saiba nenhuma destacou este ponto e, ao não fazê-lo, isto é talvez indicativo do facto de que os próprios críticos sofrem na mesma medida desta falta de apreciação da dialéctica entre "reforma" e "revolução" quanto a esquerda que estão a criticar.


Entretanto, antes de prosseguir eu deveria deixar claro que me considero parte da esquerda e tudo o que disser abaixo é num sentido construtivo, como um meio de ajudar a prática da esquerda. Acredito que a esquerda na Índia está pronta para um grande avanço desde que aprecie melhor a dialéctica entre reforma e revolução. Ou, para dizer de modo diferente, a barreira diante de um avanço da esquerda na Índia é neste momento em medida significativa o seu entendimento teórico.


Por dialéctica de reforma e revolução quero dizer o seguinte: revolução é o desenlace (denouement) de uma exigência persistente de reforma por parte do povo, a qual o sistema não pode acomodar. Portanto, pressionar por reforma e mobilizar o povo em torno de uma exigência de reforma não é "reformismo"; é em si mesmo uma tarefa revolucionária. O problema com a social-democracia, a qual é confessadamente reformista, não é que peça por "reforma" ao invés de "revolução" mas que, sendo confessadamente reformista, ajuste e limite sua exigência de reforma só àquilo que o sistema possa consentir. Ela não pede por reforma que empurrem as fronteiras do sistema.


Temos de admitir que ninguém sabe exactamente onde jaz a fronteira do sistema. Mas isso é irrelevante: se o sistema pode proporcionar um conjunto de reformas que lhe são pedidas, então isso apenas dá a oportunidade para pressionar em frente por novas reformas; e quando não pode proporcionar o que é pedido, então só dá a oportunidade para mobilizar o povo em torno do solicitado e pressionar ainda mais rumo à transcendência do sistema. Exigir sistematicamente reformas a que o povo possa responder e que empurre as fronteiras da ordem existente é a via rumo à revolução, a qual exige portanto um contínuo e intenso empenhamento com o estado de coisas existente dentro da própria ordem [estabelecida].


Uma falta de tal empenhamento e uma concentração ou no combate directo e exclusivo por uma revolução, ou simplesmente por aguardar o momento oportuno para lançar um combate por uma revolução mas confinando lutas nesse ínterim à rotina sindical, camponesa e de outras frentes da luta de massas, é o que chamo perder a dialéctica entre reforma e revolução. Sempre que a esquerda se baseou realmente nesta dialéctica, ela registou grande avanço. Um exemplo disso é o CPI(M) entre meados dos anos sessenta e aproximadamente meados dos anos meados, quando liderou grandes lutas por alterações de relações na terra, pelo reordenamento das relações centro-estado, por uma devolução democrática de poder e recursos para o nível dos panchayat e (em Kerala) pela introdução de medidas maciças de "bem-estar social". Por outro lado, quando esta dialéctica falhou, o que como argumento abaixo tem acontecido ultimamente, tem havido recuo.


Para o movimento comunista indiano, a decisão de disputar eleições parlamentares e constituir governos em estados sempre que seja eleita uma maioria, tem em si mesma significado uma apreciação desta dialéctica entre reforma e revolução. Isto acontece porque a própria distinção entre a "esquerda parlamentar" e a "esquerda revolucionária", a menos que com um sentido puramente descritivo, isto é, se associar um sentido superior de propósito à primeira em relação à segunda, como se faz frequentemente, é um modo de não atender à dialéctica entre reforma e revolução: identifica de uma maneira fácil a exigência por reforma como "reformismo".


Naturalmente, sem "parlamentar" em si não significa uma aplicação da dialéctica entre reforma e revolução. Alguém pode ser parlamentar e reformista e alguém pode ser parlamentar e revolucionário; e alguém pode ser parlamentar e revolucionário e ainda assim falhar a dialéctica entre reforma e revolução (a "esquerda revolucionária" assim o faz de qualquer modo). O ponto que desejo argumentar é que o problema actual com a esquerda indiana, mesmo aquela secção que participa em eleições parlamentares, é que falha nesta dialéctica.


Deixem-me apresentar um exemplo para clarificar o argumento geral acerca de uma falta de apreciação da dialéctica entre reforma e revolução. Aquele segmento da esquerda que está empenhado na luta armada e portanto está a trabalhar directa e exclusivamente para uma revolução desejaria, não duvido, um sistema de cuidados universais de saúde para o povo. Mas uma vez que acredita, muito correctamente, que um tal sistema de cuidados de saúde universal não é possível dentro do capitalismo na Índia, e que de qualquer modo está a combater pelo socialismo, apenas sob o qual é possível tal sistema universal de cuidados de saúde, ela considera não precisar empenhar-se em qualquer luta específica por cuidados universais de saúde dentro da ordem existente.


Também a chamada esquerda "parlamentar", embora não esteja empenhada directa e exclusivamente na luta armada, para a qual acredita que as condições não estão maduras, também acredita, correctamente, que cuidados universais de saúde na Índia só são possíveis sob o socialismo. Uma vez que ela está a trabalhar em favor do socialismo, embora sem no momento recorrer à luta armada, ela também não levanta a exigência de um acordo para cuidados de saúde universais: pedir por cuidados universais sob o capitalismo na sua visão seria análogo a pedir o impossível. Portanto ela também, enquanto se concentra no combate contra as injustiças concretas sobre o povo amontoadas pelo capitalismo e na mobilização do povo através de agitações contra tais injustiças, além de fazer suas actividades de rotina na frente de massas, não executa qualquer luta específica por cuidados universais de saúde.


Portanto, temos este facto notável, ou seja, talvez o mais importante factor único, o aumento do custo de cuidados de saúde, que contribuiu para o recente crescimento do empobrecimento de vastas massas da população indiana, mal houve exigências de reformas abrangentes da parte da esquerda.


Criticar a esquerda por levantar uma tal exigência não é dizer que o capitalismo realmente providenciasse cuidados universais de saúde se a mesma fosse levantada: no que a esquerda está perfeitamente correcta. Mas não exigir alguma coisa sob o capitalismo porque a sua realização não é possível sob o capitalismo é precisamente falhar a dialéctica entre reformas e revolução. Ao contrário, todo o objectivo da prática da esquerda deve ser exigir coisas que não são necessariamente possíveis sob o capitalismo.


Não fazer isso tem dois resultados gerais: primeiro, mesmo aquilo que é potencialmente alcançável sob o capitalismo (embora possa não ir tão longe quanto cuidados universais de saúde) não é alcançado. E, segundo, não há sentido concreto que seja apresentado ao povo do que uma sociedade socialista pode alcançar, devido à ausência de tais grandes exigências. A esquerda agita-se contra injustiças (os maoistas podem fazer lutas armadas contra elas); e ao mesmo tempo promete alguma coisa "mítica" chamada socialismo. Mas uma fissura, uma não concatenação, desenvolve-se entre a sua prática diárias de agitações e sua promessa de um futuro radiante.


Uma vez que a esquerda na Índia não é social-democrata, no sentido de perder de vista o socialismo (embora diferentes elementos dentro da esquerda muitas vezes chamem-se uns aos outros como ofensa), ela não acredita que quaisquer reformas significativas sejam possíveis dentro do capitalismo, o que é uma proposição perfeitamente válida. Mas por essa mesma razão ela não está a exigir quaisquer reformas significativas dentro do capitalismo, quando ao contrário ela deveria estar a fazer precisamente isso e fazer isso por essa mesma razão. É a isto que chamo perder de vista a dialéctica entre reforma e revolução.


O que acabei de dizer pode ser prontamente admitido, mas tem duas implicações necessárias que podem não ser aceites tão facilmente, caso em que admitir o ponto acima é apenas superficial e sem significado.


O primeiro ponto é que sempre que a esquerda chegar ao poder, ao nível estadual ou local, ela deve pressionar contra os limites do que é possível sob o capitalismo. Uma exigência por cuidados universais de saúde da parte da esquerda, quando ela não está no poder, não tem significado se não houver uma forte pressão para isso (embora isto não possa realmente ser alcançado devido às limitações dos governos estaduais) quando a esquerda tem poder a nível estadual, tal como uma oposição ao neoliberalismo em documentos e agitações da esquerda carecem de credibilidade se esta perseguir exactamente as mesmas políticas dos proponentes do neoliberalismo quando este tem poder ao estatal. Fazer o último por causa das limitações aos governos estaduais dentro da ordem existente, a qual sem dúvida é rigorosa, e defender de maneira separada e não coerente uma nova ordem que transcende a existente, é perder a dialéctica entre reforma e revolução.


Um corolário disto é o que se segue: perder qualquer oportunidade de pressionar os limites da ordem existente que pode vir a ser o caminho da esquerda, seja a nível de estado ou nível nacional, através do sistema eleitoral (como aconteceu quando Jyoti Basui ofereceu-se para primeiro-ministro do país), também equivale a ignorar a dialéctica entre reforma e revolução. É tratar a revolução como uma matéria do amanhã para a qual hoje devemos permanecer "puros" sem nos envolvermos na política confusa do "hoje" mesmo que esta nos ofereça a possibilidade de pressionar os limites do sistema. Assim, deixa-se de ver que pressionar "hoje" contra as fronteiras do sistema aumenta as perspectivas de um "amanhã" revolucionário.


A segunda implicação pode ser vista como se segue. Referi-me acima aos cuidados universais de saúde, os quais são uma "coisa boa" em si mesma. Mas as pessoas não sofrem apenas com a ausência de "coisas boas"; elas sofrem também com a lógica inexorável do funcionamento do sistema capitalista. Mobilizar o povo através de agitações contra estes sofrimentos iria fortalecê-lo não só por lhe apresentar uma alternativa chamada "socialismo" em que desapareceriam os problemas com que é confrontado devido a esta lógica inexorável; mas também por realmente sugerir soluções alternativas a estes problemas, soluções que carecem de socialismo, as quais em si mesmas não implicam uma transcendência do sistema actual, mas que o próprio sistema pode ser incapaz de adoptar. Por outras palavras, a esquerda deve ter sempre um caminho alternativo de resolver todos os problemas existentes que confrontam o povo, um caminho que não seja constrangido pela lógica do sistema mas que não se limite a invocar um estado aparentemente mítico chamado "socialismo".


Na Grécia por exemplo era necessário ao Syriza ter uma solução alternativa para o problema da dívida grega em relação àquela que os regimes anteriores haviam tentado; mas ele não tinha uma tal alternativa. Por outro lado, Partido Comunista Grego simplesmente não teve em conta o próprio problema ao dizer que de qualquer forma nunca estariam nos sapatos do Syriza [NR] . A esquerda grega portanto alheou-se das responsabilidades para com o povo grego. A esquerda, segue-se, deve sempre estar empenhada nos problemas existentes do povo, deve descobrir resoluções transitórias para eles, ao invés de simplesmente ignorá-las e sustentar perante elas uma visão do socialismo em que tais problemas simplesmente não existiriam, pois isso equivale a ignorar a dialéctica entre reforma e revolução.


O que, pode-se perguntar, tem tudo isto a ver com a conjuntura actual? O facto de o neoliberalismo ter alcançado um beco sem saída do qual não é fácil escapar, o facto de ter mergulhado a economia mundial numa crise a qual, por razões estruturais básicas, não mostra sinais de acalmia, está neste momento bastante bem estabelecido e não insistirei aqui acerca disso. Neste contexto, porque a burguesia liberal está no fim da corda e não tem solução para a crise e nem mesmo percepção dela – e porque a esquerda ainda está despreparada, por razões que não precisamos desenvolver aqui – [sem] apresentar ao povo uma rota alternativa pela qual ele possa escapar da sua actual situação (em oposição a meramente advogar o socialismo o que, como tenho argumentado, é inadequado), elementos fascistas, propagando uma mistura de messianismo e ódio para com o "outro", estão em ascensão à escala mundial; e o capital financeiro internacional está a apoiá-los a fim de reforçar a sua posição durante a crise contra ameaças potenciais.


Um tal cenário está a verificar-se também na Índia onde elementos fascistas têm o poder do Estado. Nós naturalmente ainda não temos um Estado fascista, mas estes elementos estão a tentar tudo o que podem para pressionar o Estado neoliberal na direcção de um Estado neoliberal fascista. Este período de transição, antes de uma severa repressão fascista ser desencadeada sobre a esquerda, apresenta uma oportunidade de mobilizar o povo contra os fascistas em defesa de democracia e dos direitos civis.


Para se contrapor ao assalto fascista ela tem, entretanto, de construir uma aliança tão ampla quanto possível de forças laicas e democráticas, o que levanta uma questão muito válida: se o crescimento do fascismo foi um resultado do imobilismo(stasis) criado pelo neoliberalismo, então como pode o fascismo ser combatido em aliança com partidos que apoiam o neoliberalismo? Assim fazer certamente significaria apenas uma persistência do imobilismo, de modo que mesmo que os fascistas sejam temporariamente derrotados, eles retornariam mais uma vez em vingança. Como pode a esquerda perseguir uma prática que não só ajude a repelir o assalto fascista imediato como também mude a própria conjuntura que dá origem ao fascismo?


Uma vez que o alcance do primeiro destes objectivos não pode ser consolidado sem alcançar o segundo, há dentro da esquerda uma opinião forte de que não deveria haver entendimento com quaisquer forças política neoliberais burguesas. E esta opinião tem sido avançada numa força enviesada com a sugestão de que o governo Hindutva na Índia não representa um regime fascista. A razão para esta opinião enviesada é que se alguém concordar em que é fascista então, de acordo com a tese de Dimitrov adoptada no sétimo Congresso da Internacional Comunista e geralmente aceite então e agora pelos comunistas de toda a parte, isto apelaria a uma unidade oposicionista de todos, incluindo mesmo os elementos neoliberais burgueses. (Pode-se recordar que a posição do Sétimo Congresso surgiu como rectificação do desastroso "terceiro período" ultra-esquerdista do Sexto Congresso, porque os comunistas alemães não fizeram nenhuma tentativa para se unirem aos sociais-democratas a fim de manter Hitler afastado do poder, o que era claramente possível em 1933). Portanto, um debate um tanto estranho levantou-se dentro da esquerda indiana sobre se o regime Modi é fascista ou não.


Toda esta discussão precisa no entanto ser ancorada numa apreciação da dialéctica entre reforma e revolução, o que não acontece. Numa situação em que vasto número de pessoas das mais oprimidas, os muçulmanos, os dalits, os tribais, as outras minorias religiosas, mulheres, trabalhadores agrícolas, o campesinato e os pequenos produtores estão a gemer sob a tirania do regime Modi, continuar a esquerda com a sua rotina das frentes de luta de massas, suplementadas sem dúvida pela resistência a actos específicos de injustiça, repressão, autoritarismo e supressão de liberdades civis, é evadir-se da sua responsabilidade histórica, abandonar uma oportunidade histórica de combater por uma mudança que, embora aparentemente reformista no imediato, pode ter dialecticamente implicações revolucionárias.


Em suma, a questão real não é como chamamos a administração Modi (seu carácter extremamente perigoso não é alterado nem minimamente pelo modo como a chamamos); não é mesmo se pode haver qualquer base de entendimento com elementos neoliberais burgueses (um programa mínimo comum sempre pode ser elaborado mesmo com eles que avance os interesses do povo e atrase o impacto do neoliberalismo; na verdade a esquerda tem de fazer um tal programa acontecer ). A questão real é reconhecer o imperativo político de combater a administração Modi, o qual é em si mesmo uma tarefa revolucionária para a esquerda. Unir todas as forças políticas para isso e desenvolver as possibilidades práticas para tal unidade, e proposta práticas para aliviar as consequências do neoliberalismo para este fim, não é uma tarefa "reformista" mas algo que é exigido hoje, acima de tudo, pelas necessidades da revolução indiana.

ARTIGO PUBLICADO EN RESISTIR.INFO