Militares, contritos e criminais de guerra

Jovem, marxista e destemido, o escritor nova-iorquino Howard Zinn alistou-se no exército norte-americano para fazer frente ao monstro fascista que daquela aterrava o mundo. Destinado numa unidade de bombardeiros, viu-se certo dia sobrevoando a localidade francesa de Royan, uma pequena vila turística da beira atlântica convertida em refúgio, segundo a inteligência, de soldados nazis e paisanos colaboracionistas. Não houve piedade no bombardeio. Após uma primeira passada de bombas convencionais, outra boa mão de napalm reduziu a cidade a escombro. Anos depois, já rematada a guerra, Howard deu em voltar a Royan para falar com as gentes da localidade, para olhar de frente aquelas pessoas às que ele, no dia do bombardeio, não pudera enxergar através do visor da aeronave. O resultado da pesquisa foi atroz: naquele infausto 15 de abril de 1945, com a guerra na Europa quase acabada, aquela ação aérea sobre Royan rematara com a vida de mais de dous mil civis inocentes e inermes, junto com a de duas dúzias de soldados alemães aquartelados à espera da rendição. Se calhar mais atroz foi a descoberta da razão de um bombardeio militarmente inútil: dar-lhe lustre à folha de serviço de algum estratega avantajado.

O impacto da pescuda marcou Howard de por vida. Ao seu esquerdismo inicial, tingido com achegas anarquistas, adiu o valor de um pacifismo radical, medular, militante. As campanhas do Vietname, de Iraque ou Afeganistão, os jogos de guerra imperiais, as provas atômicas ou a instalação de mísseis nucleares no chamado teatro europeu contaram sempre com a oposição ativa de pessoas como Noam Chomski ou Howard Zinn. O seu último livro, A bomba (2010), é o alegado antibelicista final deste rebelde que morreu maldizendo o seu papel nestoutro teatro do mundo: um papel forçado de criminal de guerra.

Poucos imaginam que o resoluto capitão Salgueiro Maia, que sobe Chiado acima cara o Quartel do Carmo, deixa atrás uma longa história de heroica luta no lado equivocado. A gente do comum, na altura chamada povo, remoinha-se derredor dos soldados do Movimento das Forças Armadas que cercam o primeiro ministro e os seus malandros guaridos no quartel da GNR. Começa o período da simbiose mais fermosa da historia europeia recente: Povo-MFA, MFA-Povo. Porém, só um ano antes Maia comandava os homens que se batiam contra os guerrilheiros do PAIGC em Guilege, enclave estratégico daquele inferno guineano alcunhado o Vietname português. Contam as crônicas que numa ação contraofensiva a companhia de Maia acabou com a vida de dezenas de guerrilheiros guineanos, quatro internacionalistas da Mauritânia e dous sanitários cubanos, um médico e uma enfermeira. Mas em palavras dele próprio, às vezes é preciso desobedecer e, andando o tempo, umas ações militares foram esconjuradas por outras de senso contrário. Maia madurou na Guiné e floresceu em Lisboa. A sua ação do 25 de Abril acabou abrindo a porta da independência guineense contra a que ele, meses antes, lutava. Hoje Maia, redimido, é o do Largo do Carmo e não o do inferno colonial de Guilege.

O oficial da Wehrmacht Gert Bastian diria, anos mais tarde, não ter sabido nada de nada sobre as atrocidades que o seu exército infligira à população civil no frente do Leste. O seu meteórico ascenso no seio do Bundeswehr, o exército otânico da Alemanha Federal de pós-guerra, levou-no até o generalato de contado, e de aí ao exercício de altos postos de responsabilidade no seio da Aliança Atlântica. Eram os anos nos que o binômio Reagan-Thatcher fazia reagir o mundo capitalista injetando sangue envenenado no exausto corpo do sistema. Nascia o neoliberalismo que hoje padecemos acompanhado de uma agressiva aposta militar. Europa, inçada de cabeças nucleares, entrava de cheio na espiral da tolémia que a abocava ao desastre. É aqui quando o general Bastian muda de bando: arruma a gorra de prato, renuncia aos seus cargos na OTAN e entra no movimento pacifista, do que junto à sua companheira Petra Kelly chegaria a ser destacada figura pública até a estranhíssima morte de ambos, anos mais tarde. Numa época na que o Apocalipse se tocava com a mão, a aposta antinuclear de Bastian foi um estranho raio de sentido comum; numa biografia na que há mais sombras que luzes, ter escolhido a claridade no momento mais oportuno é mérito que ninguém lhe poderá arrebatar.

“En Libia se han alcanzado todos los objetivos”, sentenciava em 2011 o aviador José Julio Rodríguez, na altura máximo responsável do exército espanhol. Os objetivos referidos eram a destruição do país com maior desenvolvimento humano de África, a apropriação dos seus imensos recursos de petróleo e gás natural, a partição do governo em duas entidades estatais irreconciliáveis, uma em Trípoli e outra em Bengasi, a atomização da sociedade em grupúsculos rivais armados até os dentes, a aparição hegemônica do extremismo islâmico a tiro de pedra da Europa, o assassinato de um chefe de estado que meses antes departia amigavelmente nas chancelarias dos seus futuros assassinos e, finalmente, o extermínio de mais de trinta mil pessoas, entre elas nenas e nenos, mulheres e idosos, danos colaterais necessários para rubricar com sucesso uma aventura militar da OTAN resultada em apoio do jihadismo.

Nem o feito de ser Líbia a dia de hoje um anárquico estado falido onde se cortam cabeças com facilidade extrema fai sair da boca dos perpetradores do desastre, valedores mediáticos incluídos, o mínimo assomo de autocrítica. O aviador Julio Rodríguez, o general de Podemos, otânico convencido, não parece amostrar nem a amarga toma de consciência de Howard Zinn, nem a honrosa atitude do abandono do barco no momento preciso de Gert Bastian, nem muito menos a vontade de empreender ações militares redentoras ao estilo de Salgueiro Maia. Pola contra, Rodríguez insiste no seu atlantismo e leva Podemos e aliados a um complicado território. Eu, com sinceridade, pergunto-me que benefício pode tirar a coligação podemita de uma decisão política que vai muito para além da política e que alguém, Podemos ou aliados que se fazem passar por rebeldes, nos deveria explicar com claridade.
,-------------------------------------------------------------------------------------------------
Nota da Fundación Bautista Álvarez, editora do dixital Terra e Tempo: As valoracións e opinións contidas nos artigos das nosas colaboradoras e dos nosos colaboradores -cuxo traballo desinteresado sempre agradeceremos- son da súa persoal e intransferíbel responsabilidade. A Fundación e mais a Unión do Povo Galego maniféstanse libremente en por elas mesmas cando o consideran oportuno. Libremente, tamén, os colaboradores e colaboradoras de Terra e Tempo son, por tanto, portavoces de si proprios e de máis ninguén.