Herança e ideologia burguesa
Se um trabalhador braçal perguntasse a um economista burguês "Por que o Ambani -magnata indiano, uma das maiores fortunas da Ásia- tem tanta riqueza mas eu não", a resposta daquele economista seria que Ambani tem certas "qualidades especiais" que faltam ao trabalhador braçal. Contudo, nem todos os economistas burgueses concordam sobre o que são exactamente estas "qualidades especiais" que se supõe explicarem as desigualdades de riqueza.
Estas "qualidades especiais" que supostamente explicam a riqueza de uma pessoa devem ser independentes do facto de aquela pessoa ser rica, se tal explicação tiver sentido lógico. Numa economia capitalista por exemplo verifica-se acumulação de capital e portanto a riqueza aumenta ao longo do tempo. O povo trabalhador cujos rendimentos são demasiado baixos mesmo para a sua subsistência tem pouca possibilidade de poupar e, uma vez que a poupança ipso facto implicação acréscimo de riqueza, eles não podem aumentar a sua riqueza e, daí, nem mesmo adquirir qualquer riqueza para começar. Conclui-se portanto que uma explicação da razão porque Ambani tem riqueza ao passo que o trabalhador braçal não tem, explicação essa que localiza a "qualidade especial" de Ambani no facto de este ser mais parcimonioso, isto é, poupar mais do que o trabalhador braçal, é logicamente falha. Isto ocorre porque, se o trabalhador braçal tivesse tanta riqueza quanto Ambani, então ele teria sido tão parcimonioso quanto, se não mais, do que Ambani.
Ser parcimonioso, por outras palavras, é uma qualidade de toda pessoa rica – uma vez que elas não podem consumir todo o rendimento que a sua riqueza gera. A maior parcimónia de Ambani, portanto, é parte integral da sua condição de riqueza; não é qualquer "qualidade especial" e não pode explicar porque um homem chamado Ambani deveria ser mais rico do que um trabalhador braçal. A "qualidade especial", em suma, tem de ser independente do facto de Ambani possuir riqueza.
Da mesma forma, considere os capitalistas a que Narendra Modi chama de "criadores de riqueza". Isto naturalmente é uma descrição absurda de um processo social. Mas vamos ignorar este absurdo por um momento e aceitar esta descrição só para argumentar. A questão é que isto não explica porque algumas pessoas chamadas Ambani ou Adani deveriam ser os “criadores de riqueza” e não a pessoa que actualmente é uma trabalhadora braçal.
Uma "qualidade especial" que o economista burguês Joseph Schumpeter enfatizou foi a criatividade, isto é, a capacidade de introduzir "inovações", dentre as quais ele incluía novos métodos de produção, novos produtos, novos mercados e assim por diante. Ele traçou uma distinção entre "invenções" e "inovações", a primeira referindo-se ao desenvolvimento de conhecimento acerca de novos processo e produtos, e a segunda à utilização prática deste conhecimento. Se bem que "invenções" ocorram independentemente na sociedade, a capacidade de introduzir estas invenções no processo de produção exigia uma "qualidade especial", a qual consistia na capacidade de identificar e aproveitar uma oportunidade lucrativa. Esta "qualidade especial" era possuída apenas por uns poucos, aos quais ele chamou "empreendedores". O empreendedorismo segundo ele nada tinha a ver com o facto de uma pessoa ser rica ou não, mas o empreendedorismo era a razão para a aquisição de riqueza uma vez que o primeiro a introduzir um novo processo ou produto proporciona um avanço sobre outros e torna-o rico. A explicação de Schumpeter, portanto, não era logicamente falha tal como o argumento da "parcimónia".
Schumpeter também argumentou que as empresas existentes tendem a ser definidas nos seus modos de pensar e menos propensas a experimentar novos processos e produtos, etc, razão pela qual os empreendedores vêm de fora das fileiras de empresas existentes; eles criam novas empresas e fazem fortuna pela introdução de inovações. Ele argumentava, portanto, que embora a desigualdade de riqueza existisse numa sociedade capitalista, a composição do grupo de indivíduos mais ricos, ou seja, a identidade daqueles que constituem, digamos, os 5% mais ricos, continuava a mudar ao longo do tempo.
A teoria de Schumpeter, que tomou muito emprestado de Marx, é fundamentalmente falaciosa; mas não vamos entrar nisso agora. Além disso, mesmo Schumpeter admitia que, no capitalismo moderno, onde as empresas têm laboratórios de investigação ligados a elas, tanto as invenções como as inovações não eram independentes da dimensão das empresas e, portanto, da riqueza já possuída pelos proprietários das mesmas. Isso torna a sua teoria inadequada para explicar por que alguns ficaram ricos e outros não, pois fazia com que o acréscimo de riqueza dependesse da riqueza já possuída. Mas vamos ignorar todos estes problemas e assumir com Schumpeter que os ricos são ricos porque têm uma “qualidade especial” que é a “capacidade de inovar”, ou o que ele chamou de “empreendedorismo”.
Mas este facto não explica nem justifica porque os filhos dos ricos também deveriam ser ricos. Não há “qualidade especial” exibida por essas crianças que possa explicar a sua riqueza. A razão pela qual elas possuem riqueza, portanto, tem inteiramente a ver com uma disposição social pela qual se permite que a riqueza seja herdada pelos filhos dos pais, uma disposição que não tem lógica económica.
Certamente, pode-se pensar, mais uma vez considerando a explicação de Schumpeter para ilustrar o ponto, se não fosse permitido que a riqueza fosse transmitida aos filhos, então não haveria incentivo para os "empreendedores" introduzirem "inovações", que as leis de herança eram um preço a ser pago para o "progresso" no capitalismo. Mas "incentivos" são completamente irrelevantes para explicar a "capacidade inovativa" em Schumpeter ou em qualquer outra teoria semelhante. Se um novo processo estiver disponível, mas não for introduzido no sistema de produção por uma empresa, então seria introduzido por outra que superaria e substituiria a primeira. A motivação para a introdução de inovações reside, portanto, na competição e não em qualquer incentivo. Por outras palavras, o ritmo de introdução de inovações de acordo com todas estas teorias burguesas não será afectado nem um pouco, mesmo se a totalidade da riqueza dos “empreendedores” fosse tributada no momento da sua morte.
É verdade que, se uma invenção estiver sob o controle monopolista de alguma empresa, então ela não a introduziria no sistema de produção, na ausência de “incentivos” adequados, tais como a capacidade de transferir riqueza a filhos e netos. Mas então a explicação da riqueza mudou da "capacidade de inovação" para a de monopólio; e se o monopólio é a explicação da riqueza então ele não pode ser justificado numa sociedade democrática mesmo de acordo com a teoria burguesa (e é por isso que existem leis anti-trust e medidas anti-monopólio). De facto, se o monopólio é aceite como uma explicação da riqueza, então a teoria burguesa tem de aceitar a validade da análise económica marxista, a qual rastreia a origem da mais-valia, a fonte de acumulação sob o capitalismo, na propriedade monopolista dos meios de produção por uma classe de capitalistas.
Alguns economistas burgueses podem alegar que, devido às economias de escala, a dimensão dos estabelecimentos de investigação e produção tem de ser grande e essa é a razão da existência de monopólios, de modo que não é preciso derramar lágrimas pela sua existência; eles são essenciais para o "progresso" no mundo de hoje e isso explica e justifica desigualdades permanentes de riqueza. Contudo, este é um argumento erróneo, uma vez que a produção em grande escala não significa necessariamente grandes desigualdades de riqueza privada. A produção em grande escala pode ser realizada onde a propriedade está dispersa ou a propriedade é do Estado.
Segue-se portanto que a herança da riqueza não pode ser justificada pela própria teoria burguesa. É uma disposição social para a qual não há lógica económica, mesmo de acordo com a teoria burguesa. Examinámos apenas a teoria de Schumpeter; mas o mesmo pode ser dito sobre qualquer outra explicação das desigualdades de riqueza, nomeadamente que nenhuma explicação logicamente válida da desigualdade de riqueza na sociedade proposta por qualquer corrente da teoria burguesa pode justificar a instituição da herança de riqueza.
Se bem que a teoria burguesa não possa justificar a instituição da herança, esta instituição é a que prevalece e é exigida pelos capitalistas. Mas uma vez que a construção de uma sociedade democrática requer que as desigualdades de riqueza sejam controladas, a necessidade de confrontar os capitalistas através da imposição de impostos substanciais sobre a herança não pode ser negada, mesmo pela teoria burguesa. O facto de em sociedades como a nossa quase não haver tributação sobre herança diz muito sobre a má fé dos nossos governos.
O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2020/0110_pd/inheritance-and-bourgeois-ideology. Tradução de JF.
Estas "qualidades especiais" que supostamente explicam a riqueza de uma pessoa devem ser independentes do facto de aquela pessoa ser rica, se tal explicação tiver sentido lógico. Numa economia capitalista por exemplo verifica-se acumulação de capital e portanto a riqueza aumenta ao longo do tempo. O povo trabalhador cujos rendimentos são demasiado baixos mesmo para a sua subsistência tem pouca possibilidade de poupar e, uma vez que a poupança ipso facto implicação acréscimo de riqueza, eles não podem aumentar a sua riqueza e, daí, nem mesmo adquirir qualquer riqueza para começar. Conclui-se portanto que uma explicação da razão porque Ambani tem riqueza ao passo que o trabalhador braçal não tem, explicação essa que localiza a "qualidade especial" de Ambani no facto de este ser mais parcimonioso, isto é, poupar mais do que o trabalhador braçal, é logicamente falha. Isto ocorre porque, se o trabalhador braçal tivesse tanta riqueza quanto Ambani, então ele teria sido tão parcimonioso quanto, se não mais, do que Ambani.
Ser parcimonioso, por outras palavras, é uma qualidade de toda pessoa rica – uma vez que elas não podem consumir todo o rendimento que a sua riqueza gera. A maior parcimónia de Ambani, portanto, é parte integral da sua condição de riqueza; não é qualquer "qualidade especial" e não pode explicar porque um homem chamado Ambani deveria ser mais rico do que um trabalhador braçal. A "qualidade especial", em suma, tem de ser independente do facto de Ambani possuir riqueza.
Da mesma forma, considere os capitalistas a que Narendra Modi chama de "criadores de riqueza". Isto naturalmente é uma descrição absurda de um processo social. Mas vamos ignorar este absurdo por um momento e aceitar esta descrição só para argumentar. A questão é que isto não explica porque algumas pessoas chamadas Ambani ou Adani deveriam ser os “criadores de riqueza” e não a pessoa que actualmente é uma trabalhadora braçal.
Uma "qualidade especial" que o economista burguês Joseph Schumpeter enfatizou foi a criatividade, isto é, a capacidade de introduzir "inovações", dentre as quais ele incluía novos métodos de produção, novos produtos, novos mercados e assim por diante. Ele traçou uma distinção entre "invenções" e "inovações", a primeira referindo-se ao desenvolvimento de conhecimento acerca de novos processo e produtos, e a segunda à utilização prática deste conhecimento. Se bem que "invenções" ocorram independentemente na sociedade, a capacidade de introduzir estas invenções no processo de produção exigia uma "qualidade especial", a qual consistia na capacidade de identificar e aproveitar uma oportunidade lucrativa. Esta "qualidade especial" era possuída apenas por uns poucos, aos quais ele chamou "empreendedores". O empreendedorismo segundo ele nada tinha a ver com o facto de uma pessoa ser rica ou não, mas o empreendedorismo era a razão para a aquisição de riqueza uma vez que o primeiro a introduzir um novo processo ou produto proporciona um avanço sobre outros e torna-o rico. A explicação de Schumpeter, portanto, não era logicamente falha tal como o argumento da "parcimónia".
Schumpeter também argumentou que as empresas existentes tendem a ser definidas nos seus modos de pensar e menos propensas a experimentar novos processos e produtos, etc, razão pela qual os empreendedores vêm de fora das fileiras de empresas existentes; eles criam novas empresas e fazem fortuna pela introdução de inovações. Ele argumentava, portanto, que embora a desigualdade de riqueza existisse numa sociedade capitalista, a composição do grupo de indivíduos mais ricos, ou seja, a identidade daqueles que constituem, digamos, os 5% mais ricos, continuava a mudar ao longo do tempo.
A teoria de Schumpeter, que tomou muito emprestado de Marx, é fundamentalmente falaciosa; mas não vamos entrar nisso agora. Além disso, mesmo Schumpeter admitia que, no capitalismo moderno, onde as empresas têm laboratórios de investigação ligados a elas, tanto as invenções como as inovações não eram independentes da dimensão das empresas e, portanto, da riqueza já possuída pelos proprietários das mesmas. Isso torna a sua teoria inadequada para explicar por que alguns ficaram ricos e outros não, pois fazia com que o acréscimo de riqueza dependesse da riqueza já possuída. Mas vamos ignorar todos estes problemas e assumir com Schumpeter que os ricos são ricos porque têm uma “qualidade especial” que é a “capacidade de inovar”, ou o que ele chamou de “empreendedorismo”.
Mas este facto não explica nem justifica porque os filhos dos ricos também deveriam ser ricos. Não há “qualidade especial” exibida por essas crianças que possa explicar a sua riqueza. A razão pela qual elas possuem riqueza, portanto, tem inteiramente a ver com uma disposição social pela qual se permite que a riqueza seja herdada pelos filhos dos pais, uma disposição que não tem lógica económica.
Certamente, pode-se pensar, mais uma vez considerando a explicação de Schumpeter para ilustrar o ponto, se não fosse permitido que a riqueza fosse transmitida aos filhos, então não haveria incentivo para os "empreendedores" introduzirem "inovações", que as leis de herança eram um preço a ser pago para o "progresso" no capitalismo. Mas "incentivos" são completamente irrelevantes para explicar a "capacidade inovativa" em Schumpeter ou em qualquer outra teoria semelhante. Se um novo processo estiver disponível, mas não for introduzido no sistema de produção por uma empresa, então seria introduzido por outra que superaria e substituiria a primeira. A motivação para a introdução de inovações reside, portanto, na competição e não em qualquer incentivo. Por outras palavras, o ritmo de introdução de inovações de acordo com todas estas teorias burguesas não será afectado nem um pouco, mesmo se a totalidade da riqueza dos “empreendedores” fosse tributada no momento da sua morte.
É verdade que, se uma invenção estiver sob o controle monopolista de alguma empresa, então ela não a introduziria no sistema de produção, na ausência de “incentivos” adequados, tais como a capacidade de transferir riqueza a filhos e netos. Mas então a explicação da riqueza mudou da "capacidade de inovação" para a de monopólio; e se o monopólio é a explicação da riqueza então ele não pode ser justificado numa sociedade democrática mesmo de acordo com a teoria burguesa (e é por isso que existem leis anti-trust e medidas anti-monopólio). De facto, se o monopólio é aceite como uma explicação da riqueza, então a teoria burguesa tem de aceitar a validade da análise económica marxista, a qual rastreia a origem da mais-valia, a fonte de acumulação sob o capitalismo, na propriedade monopolista dos meios de produção por uma classe de capitalistas.
Alguns economistas burgueses podem alegar que, devido às economias de escala, a dimensão dos estabelecimentos de investigação e produção tem de ser grande e essa é a razão da existência de monopólios, de modo que não é preciso derramar lágrimas pela sua existência; eles são essenciais para o "progresso" no mundo de hoje e isso explica e justifica desigualdades permanentes de riqueza. Contudo, este é um argumento erróneo, uma vez que a produção em grande escala não significa necessariamente grandes desigualdades de riqueza privada. A produção em grande escala pode ser realizada onde a propriedade está dispersa ou a propriedade é do Estado.
Segue-se portanto que a herança da riqueza não pode ser justificada pela própria teoria burguesa. É uma disposição social para a qual não há lógica económica, mesmo de acordo com a teoria burguesa. Examinámos apenas a teoria de Schumpeter; mas o mesmo pode ser dito sobre qualquer outra explicação das desigualdades de riqueza, nomeadamente que nenhuma explicação logicamente válida da desigualdade de riqueza na sociedade proposta por qualquer corrente da teoria burguesa pode justificar a instituição da herança de riqueza.
Se bem que a teoria burguesa não possa justificar a instituição da herança, esta instituição é a que prevalece e é exigida pelos capitalistas. Mas uma vez que a construção de uma sociedade democrática requer que as desigualdades de riqueza sejam controladas, a necessidade de confrontar os capitalistas através da imposição de impostos substanciais sobre a herança não pode ser negada, mesmo pela teoria burguesa. O facto de em sociedades como a nossa quase não haver tributação sobre herança diz muito sobre a má fé dos nossos governos.
O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2020/0110_pd/inheritance-and-bourgeois-ideology. Tradução de JF.