ESP. A mentira dá-nos força

ESP. A mentira dá-nos força

Não é nada difícil comprovar como no mundo hoje chamado globalizado (quando não o seria!) os discursos que aparecem simultânea e instantaneamente em várias partes do mundo se parecem entre si como duas gotas de água. Relatarei aqui o que está a acontecer no contexto educativo do Brasil do golpe de Temer, e vocês, como num jogo, hão-me dizer se se lhes parece a algo conhecido.

No gigante do sul um movimento chamado Escola Sem Partido está surgindo como da nada e, desde faz meses, está a ganhar súbita e inesperada relevância. ESP é um esquema bem sustentado por figuras públicas da extrema-direita, que visa convencer a pais e mães do perigo extremo que as suas crianças correm nas escolas públicas ao serem educados em valores alegadamente doutrinadores. As escolas do país seriam, segundo este relato, feudos ideológicos onde os professores de esquerda lobotomizariam os alunos introduzindo contidos discordes com os valores familiares. Em concreto, uma das suas primeiras demandas aponta à denúncia da ideologia de género, em virtude da qual os alunos estariam a receber nas escolas modelos sexuais inadequados. Mas há mais. Com a pedagogia libertadora de Paulo Freire expressamente no alvo do fuzil, os assinantes da iniciativa apresentam-nos um panorama escolar de feudo ideológico progressista, onde se estariam a inculcar perigosas e revolucionárias teorias sociais nas tenras mentes dos miúdos.

Olho e não se confundam: graças ao apoio de parlamentares, bancos, empresas, e gozando de um suporte mediático considerável, ESP não é hoje um movimento marginal. De facto, uma Proposta de Emenda Constitucional que visa eliminar a “ideologização nas escolas”, impulsada por um congressista tele-predicador com um amplo historial de corrupção, está a ser estudada no parlamento golpista. Apesar da cuidada, ambígua e por vezes mordaz linguagem que ESP utiliza nas redes, começando pelo próprio nome da organização, as ações legais que os golpistas impulsam abrangem tomadas tão sérias como penas de prisão para os professores que incumpram a lei. E nas redes sociais estão-se a oferecer somas de dinheiro a alunos que com os telemóveis gravem, nas salas de aula, os professores em suposta ação proselitista.

Como veem, e desde uma perspetiva temporal, nada novo em baixo do sol. Já a ditadura militar brasileira dos anos sessenta e setenta expurgava e encarcerava os professores ideologicamente perigosos. E como também terão observado, quase nada na perspetiva espacial que nos soe a novo. Como se nós não estivéssemos já mais que cheios na Galiza de estas estratagemas, destes círculos, destes apoios e de estes intocáveis personagens!

Repare-se na similitude das estratégias e dos discursos com alguma cousa das que já conhecem. Para começar, criminaliza-se gratuitamente a professores incómodos para a ideologia dominante, admitindo o inevitável influxo que o sistema educativo exerce sobre as pessoas só quando naturaliza a desigualdade social, étnica ou de género. E na Galiza também linguística, cousa que sucede, como bem sabemos, a maior parte das vezes. A seguir, e isto é extremadamente interessante, constrói-se um passado inexistente e faz-se visualizar um presente fictício. Explico-me: nem nunca no Brasil a pedagogia de Paulo Freire atingiu o nível de maioritária ou de generalizada, nem nunca nas escolas galegas o idioma galego, salvo honrosas exceções, chegou a estar normalizado. Creio que já sabem por onde vou. Mas este passado irreal e este presente invisível são tomados como certos, e são construídas sobre eles as premissas nas que se assenta todo o esquema ideológico da organização.

Depois, claro, procura-se e acha-se sem demasiada dificuldade o apoio mediático, empresarial e político. Lembrem o diário El Mundo, repartido de balde, a atacar calculadamente a nossa língua nos anos de chumbo. Lembrem algum empresário destacado na moda autofóbica de aquela altura. Lembrem significados políticos populares bailando, quando lhes convinha, ao som das melodias linguicidas pelas ruas de Santiago. Somem a isto a repetição goebbeliana da mensagem e temos a metade da gente convencida do que nunca foi. Que sucederia -perguntava-me há anos uma conhecida, galego-falante, no meio de uma conversa- se vou a escola dos meus filhos e o professor me obriga a falar-lhe em galego? A pergunta, por parva que seja, obriga-nos pouco menos que a ter que explicar o mundo desde o dia do Génesis se queremos respondê-la bem.

Mas voltemos ao Brasil. Mentiria se digo que não identifico todo isto, o de aqui e de o ali, com episódios concretos do passado, se digo que não vejo nas pessoas que aderem estas montagens a reencarnação da canalha que, bem alimentada pelo capital, começou a tomar forma nos anos 20 e assolou o mundo até bem entrado passado século. Mas cuidado: mudam-se os tempos e mudam-se os discursos, mudam-se os canais de transmissão e mudam-se as linguagens. O que menos se muda, e que me desculpe Camões, são as vontades. Tudo o demais muda e isso nos obriga de algum jeito a mudarmos todos. Há no Brasil quem denuncie com inteligência e perseverança estas estratégias, estas montagens. E aqui, na Galiza, o nosso trabalho é e será por muitos anos o de desmascarar, cada dia com forças renovadas, a mentira e os mentireiros. Utilizando os nossos recursos que serão poucos, utilizando as nossas mãos que hão de ser resilientes, incansáveis. Andamos nisso.

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