Erdogan não deseja ser o novo imperador otomano, mas tornar-se o califa
Um mês após o ataque do Azerbaijão contra os Arménios do Carabaque, os Exércitos azeri e turco avançam militarmente no terreno, enquanto Baku e Ancara somam revezes diplomáticos.
Em geral, tudo se passa como havíamos previsto: a saber, a preparação de uma operação aliada contra o chefe da Confraria dos Irmãos Muçulmanos, Recep Tayyip Erdoğan, que por acaso é o Presidente da Turquia. Tal pode vir a ser desencadeado logo no início dum novo genocídio arménio.
No entanto, com actores imprevistos intervindo nesta guerra e sendo o resultado da eleição presidencial dos Estados Unidos incerto, o plano de Washington poderá vir a ser perturbado.
Desde a sua criação, a Turquia moderna nega o genocídio de não-muçulmanos (1894-95 e 1915-23) e destruiu inúmeras provas. No entanto documentos autenticando as ordens do Império otomano e dos Jovens Turcos foram encontrados em 2018 [1].
Desde 1974, a Turquia ocupa o Nordeste de Chipre. Muito embora a ilha tenha aderido à União Europeia em 2004 ela continua a manter-se lá. O Exército turco ocupa pois uma parte do território da União desde há 16 anos.
Em 2012, A Turquia realizou uma operação, por conta da OTAN, de despovoamento da Síria. Ela propôs aos habitantes do Norte do país refugiarem-se temporariamente no seu solo, enquanto a situação militar se clarificava. Construiu várias novas cidades para os alojar, mas continua sem lhes dar acesso a essas habitações.
Em 2012, A Turquia invadiu o Norte da Síria, da qual ela continua a ocupar a província de Idleb. Depois, ela pilhou a indústria em Alepo, roubando todas as máquinas-ferramenta que encontrou nas fábricas.
Em 2013, o «banqueiro da Alcaida», o saudita Yasin Al-Qadi, foi vítima de um acidente de carro em Istambul em companhia do Chefe da segurança do Presidente Erdoğan. Um filho de Erdoğan foi de imediato ao hospital visitá-lo.
Em 2014, o Exército turco enquadrou os jiadistas na Síria, atacando com eles várias localidades, incluindo a cidade arménia de Kassab, forçando a população a fugir.
Em 2015, os Serviços Secretos turcos forneceram toda a assistência ao Daesh (E.I.), enquanto uma empresa do genro do Presidente Erdoğan, Powertans, organizava o transporte do petróleo roubado pelos jiadistas para o porto de Ceyhan. De lá, uma outra empresa comprada por um filho do Presidente Erdoğan, a BMZ Group Denizcilik ve İnşaat A.Ş., comboiava o petróleo para Israel e para o Ocidente. Ao mesmo tempo, uma filha do Presidente Erdoğan dirigia um hospital secreto em Şanlıurfa para tratar os jiadistas e mandá-los de volta para combate.
Em 2015, a máfia turca, liderada pelo Primeiro-Ministro Binali Yıldırım, montava oficinas de falsificação nos territórios controlados pelo Daesh(EI) e encaminhava essas mercadorias para a Europa.
Em 2015, a Turquia ameaçava a União Europeia de lhe enviar, de forma brutal, um milhão de refugiados do Afeganistão, do Iraque e da Síria até obter grandes subsídios que lhe permitiram continuar as suas guerras.
Em 2015-6, a Turquia recusou o fim dos acordos secretos com a França e a Bélgica para a criação de um Curdistão na Síria. Ela organizou uma série de atentados contra eles (138 mortos em França e 35 mortos na Bélgica).
Em 2016, o Exército turco recusou deixar o território iraquiano, apesar das exigências do governo iraquiano. Aí, ele dispunha de bases provisórias desde o período de ocupação dos Estados Unidos, mas utilizava-as para apoiar o Daesh(E.I.) contra o Iraque. E, ainda lá continua.
Em 2017, o Presidente Erdoğan fez campanha junto das comunidades turcas no exterior. Ele foi proibido de realizar comícios na Holanda e na Alemanha. Nessa ocasião, tratou a Chancelerina Angela Merkel de «nazi».
Em 2019, a Turquia assinou um acordo com o governo líbio em Trípoli, depois outro com a Tunísia.
Ela começou a enviar jiadistas estacionados na zona que ocupa na Síria. Actualmente, eles batem-se contra as forças emiradenses que apoiam o governo de Bengazi.
Em 2020, a Turquia reivindicou as jazidas de gás no Mediterrâneo. Ora, as fronteiras marítimas com a Grécia não foram fixadas com exactidão aquando da criação do país. Assim, certamente ela tem direito a várias zonas, mas não a todas. Nesta ocasião, a marinha turca trata de ameaçar a marinha francesa.
Esta lista não é, evidentemente, exaustiva.
Os Estados Unidos puseram em causa o clã Erdoğan assim que ele começou a comprar armas à Rússia e a construir um “pipe-line” com ela. A partir desse momento, tentaram fazê-lo cair democraticamente apoiando o Partido Democrático do Povo (HDP).
Tendo o AKP truncado as eleições legislativas de Junho e Novembro de 2015, a CIA tentou várias vezes assassinar o «Grande Homem» (alcunha de Recep Tayyip Erdoğan). Tendo a quarta tentativa, em 15 de Julho de 2016, degenerado, os oficiais que a realizaram improvisaram um Golpe de Estado que fracassou.
Desde então, o Presidente Erdoğan, embora realçando a adesão da Turquia à OTAN, multiplica as provocações. Assim, durante uma viagem oficial, ordenou a repressão de uma manifestação de seguidores de Fahtullah Gülen diante da sua embaixada em Washington, pelo seu próprio serviço de segurança pessoal. A seguir ainda mandou prender um cidadão norte-americano.
O plano actual dos Estados Unidos é pressioná-lo até ao erro para obter apoio internacional contra ele, seguindo o modelo de acertar o passo a Saddam Hussein (Operação Tempestade no Deserto).
Claro, um tal cenário só pode cinicamente ter lugar se os Arménios forem massacrados em massa e a continuidade for assegurada na Casa Branca.
Ao longo do mês, o clã Erdoğan não parou de repetir que a OTAN necessitava mais da Turquia do que o inverso. Quer dizer que a Aliança Atlântica jamais excluirá a Turquia do seu clube e não irá, portanto, atacá-la.
O «Grande Homem» prossegue, pois, a sua ofensiva em todas as frentes. Assim, enviou conselheiros militares para treinar os guarda-costas do governo líbio de Trípoli, no lugar dos conselheiros italianos. Desta forma, ameaça a União Europeia de abrir as comportas das migrações, mas a partir de África desta vez. E, ainda, lançou ataques jiadistas contra as forças russas na Síria.
Moscovo foi a única a reagir. O Kremlin ordenou a retoma dos bombardeamentos em Idleb. Ele concentrou-os sobre um grupo pró-turco anteriormente ligado à Alcaida, mas alegando ter rompido com esta rede; um ataque que viola a letra dos acordos de distensão russo-turcos, ao mesmo tempo que expõe a submissão do movimento jiadista à autoridade pessoal de Recep Tayyip Erdoğan.
Acima de tudo, o Presidente Erdoğan abriu uma frente com o Presidente francês, Emmanuel Macron, a quem não para de insultar, mais ainda do que à Chancelerina Merkel três anos atrás. Esta querela (briga-br) é muito mais importante do que parece: ela diz respeito ao fundo do problema.
Após inúmeras voltas e reviravoltas, Recep Tayyip Erdoğan tenta responder à questão existencial da Turquia definindo-a como a pátria dos Irmãos Muçulmanos. Contrariamente a uma ideia comummente admitida, ele abandonou as fantasias neo-otomanas do seu antigo Primeiro-Ministro, Ahmet Davutoğlu (agora passado à oposição); da mesma forma renunciou aos espaços naturais que são, para ela, o mundo turcófono e o Ocidente (União Europeia/ OTAN); ele espera estender o seu poder por todo o mundo muçulmano, apegando-se ao princípio de uma religião de Estado da qual pretende tornar-se o Califa.
Importa aqui lembrar que Maomé não era como Cristo, um pequeno carpinteiro. Ele foi um homem político e um general vitorioso sendo ao mesmo tempo um líder espiritual. Na altura da sua morte, os seus discípulos dividiram-se e lutaram entre si. O «califa» (ou seja, o seu «sucessor») herdou o seu poder temporal, não espiritual. Muitos dos califas do passado, claramente não acreditavam em Deus. No fim da Primeira Guerra Mundial, o «califa» era o soberano otomano, residindo em Constantinopla (Istambul). O ideal da Confraria dos Irmãos Muçulmanos é de restabelecer o califado (o poder temporal do Profeta) por meio da lei do seu tempo, a Sharia. Como os Europeus no século XVI, os Irmãos Muçulmanos pensam que um povo deve obrigatoriamente seguir a religião do seu soberano; uma visão do mundo radicalmente oposta ao princípio da liberdade de consciência estabelecido pela França a partir da abjuração de Henrique IV (1593 [2]) ao compromisso com o laicismo (1905 [3]). Ao fazê-lo, Recep Tayyip Erdoğan e a Confraria tentam conseguir um regresso ao passado arrasando a herança de Mustafa Kemal Atatürk, o fundador da Turquia moderna.
Foi pois com toda a lógica que o Presidente Erdoğan escolheu o seu homólogo francês como o principal dos seus adversários. O resultado do combate será definido pelos Estados Unidos. Ou, eles defendem o legado britânico dos «Pais Peregrinos» do Mayflower (Joe Biden, Justin Trudeau), ou o dos imigrantes do velho continente (Donald Trump). No primeiro caso, irão acima de tudo manter a Turquia no seio da OTAN; no segundo, irão defender o seu princípio de coexistência religiosa até ao fracasso do projecto do califado.
[1] Killing Orders : Talat Pasha’s Telegrams and the Armenian Genocide, Taner Akçam, Palgrave Macmillan, 2018 ; Ordres de tuer : Arménie 1915, Taner Akçam, CNRS éditions, 2020.
[2] Para se tornar Rei de França, o Príncipe Henrique de Navarra abjurou da sua religião na Basílica de Saint-Denis e converteu-se ao catolicismo. Em troca, proclamou a liberdade de religião para todos os seus súbditos apesar de ele próprio não poder desfrutar dela.
[3] Depois de muitas reviravoltas, os Republicanos proclamaram a liberdade de consciência. Com base nisso, legislaram sobre a separação entre o Estado e as Igrejas (1905). No entanto, esta não é completa : resta um controle do Estado sobre o sacramento do casamento em algumas religiões. A opção escolhida para garantir a igualdade de direitos aos casais homossexuais, para criar um “casamento gay”, é deste ponto de vista um erro histórico. A continuidade com o movimento de laicização da sociedade teria, pelo contrário, almejado que se colocasse o casamento heterossexual na esfera privada; uma opção que havia sido aceite pela Igreja de França e que defende o Papa Francisco actualmente.
Em geral, tudo se passa como havíamos previsto: a saber, a preparação de uma operação aliada contra o chefe da Confraria dos Irmãos Muçulmanos, Recep Tayyip Erdoğan, que por acaso é o Presidente da Turquia. Tal pode vir a ser desencadeado logo no início dum novo genocídio arménio.
No entanto, com actores imprevistos intervindo nesta guerra e sendo o resultado da eleição presidencial dos Estados Unidos incerto, o plano de Washington poderá vir a ser perturbado.
Desde a sua criação, a Turquia moderna nega o genocídio de não-muçulmanos (1894-95 e 1915-23) e destruiu inúmeras provas. No entanto documentos autenticando as ordens do Império otomano e dos Jovens Turcos foram encontrados em 2018 [1].
Desde 1974, a Turquia ocupa o Nordeste de Chipre. Muito embora a ilha tenha aderido à União Europeia em 2004 ela continua a manter-se lá. O Exército turco ocupa pois uma parte do território da União desde há 16 anos.
Em 2012, A Turquia realizou uma operação, por conta da OTAN, de despovoamento da Síria. Ela propôs aos habitantes do Norte do país refugiarem-se temporariamente no seu solo, enquanto a situação militar se clarificava. Construiu várias novas cidades para os alojar, mas continua sem lhes dar acesso a essas habitações.
Em 2012, A Turquia invadiu o Norte da Síria, da qual ela continua a ocupar a província de Idleb. Depois, ela pilhou a indústria em Alepo, roubando todas as máquinas-ferramenta que encontrou nas fábricas.
Em 2013, o «banqueiro da Alcaida», o saudita Yasin Al-Qadi, foi vítima de um acidente de carro em Istambul em companhia do Chefe da segurança do Presidente Erdoğan. Um filho de Erdoğan foi de imediato ao hospital visitá-lo.
Em 2014, o Exército turco enquadrou os jiadistas na Síria, atacando com eles várias localidades, incluindo a cidade arménia de Kassab, forçando a população a fugir.
Em 2015, os Serviços Secretos turcos forneceram toda a assistência ao Daesh (E.I.), enquanto uma empresa do genro do Presidente Erdoğan, Powertans, organizava o transporte do petróleo roubado pelos jiadistas para o porto de Ceyhan. De lá, uma outra empresa comprada por um filho do Presidente Erdoğan, a BMZ Group Denizcilik ve İnşaat A.Ş., comboiava o petróleo para Israel e para o Ocidente. Ao mesmo tempo, uma filha do Presidente Erdoğan dirigia um hospital secreto em Şanlıurfa para tratar os jiadistas e mandá-los de volta para combate.
Em 2015, a máfia turca, liderada pelo Primeiro-Ministro Binali Yıldırım, montava oficinas de falsificação nos territórios controlados pelo Daesh(EI) e encaminhava essas mercadorias para a Europa.
Em 2015, a Turquia ameaçava a União Europeia de lhe enviar, de forma brutal, um milhão de refugiados do Afeganistão, do Iraque e da Síria até obter grandes subsídios que lhe permitiram continuar as suas guerras.
Em 2015-6, a Turquia recusou o fim dos acordos secretos com a França e a Bélgica para a criação de um Curdistão na Síria. Ela organizou uma série de atentados contra eles (138 mortos em França e 35 mortos na Bélgica).
Em 2016, o Exército turco recusou deixar o território iraquiano, apesar das exigências do governo iraquiano. Aí, ele dispunha de bases provisórias desde o período de ocupação dos Estados Unidos, mas utilizava-as para apoiar o Daesh(E.I.) contra o Iraque. E, ainda lá continua.
Em 2017, o Presidente Erdoğan fez campanha junto das comunidades turcas no exterior. Ele foi proibido de realizar comícios na Holanda e na Alemanha. Nessa ocasião, tratou a Chancelerina Angela Merkel de «nazi».
Em 2019, a Turquia assinou um acordo com o governo líbio em Trípoli, depois outro com a Tunísia.
Ela começou a enviar jiadistas estacionados na zona que ocupa na Síria. Actualmente, eles batem-se contra as forças emiradenses que apoiam o governo de Bengazi.
Em 2020, a Turquia reivindicou as jazidas de gás no Mediterrâneo. Ora, as fronteiras marítimas com a Grécia não foram fixadas com exactidão aquando da criação do país. Assim, certamente ela tem direito a várias zonas, mas não a todas. Nesta ocasião, a marinha turca trata de ameaçar a marinha francesa.
Esta lista não é, evidentemente, exaustiva.
Os Estados Unidos puseram em causa o clã Erdoğan assim que ele começou a comprar armas à Rússia e a construir um “pipe-line” com ela. A partir desse momento, tentaram fazê-lo cair democraticamente apoiando o Partido Democrático do Povo (HDP).
Tendo o AKP truncado as eleições legislativas de Junho e Novembro de 2015, a CIA tentou várias vezes assassinar o «Grande Homem» (alcunha de Recep Tayyip Erdoğan). Tendo a quarta tentativa, em 15 de Julho de 2016, degenerado, os oficiais que a realizaram improvisaram um Golpe de Estado que fracassou.
Desde então, o Presidente Erdoğan, embora realçando a adesão da Turquia à OTAN, multiplica as provocações. Assim, durante uma viagem oficial, ordenou a repressão de uma manifestação de seguidores de Fahtullah Gülen diante da sua embaixada em Washington, pelo seu próprio serviço de segurança pessoal. A seguir ainda mandou prender um cidadão norte-americano.
O plano actual dos Estados Unidos é pressioná-lo até ao erro para obter apoio internacional contra ele, seguindo o modelo de acertar o passo a Saddam Hussein (Operação Tempestade no Deserto).
Claro, um tal cenário só pode cinicamente ter lugar se os Arménios forem massacrados em massa e a continuidade for assegurada na Casa Branca.
Ao longo do mês, o clã Erdoğan não parou de repetir que a OTAN necessitava mais da Turquia do que o inverso. Quer dizer que a Aliança Atlântica jamais excluirá a Turquia do seu clube e não irá, portanto, atacá-la.
O «Grande Homem» prossegue, pois, a sua ofensiva em todas as frentes. Assim, enviou conselheiros militares para treinar os guarda-costas do governo líbio de Trípoli, no lugar dos conselheiros italianos. Desta forma, ameaça a União Europeia de abrir as comportas das migrações, mas a partir de África desta vez. E, ainda, lançou ataques jiadistas contra as forças russas na Síria.
Moscovo foi a única a reagir. O Kremlin ordenou a retoma dos bombardeamentos em Idleb. Ele concentrou-os sobre um grupo pró-turco anteriormente ligado à Alcaida, mas alegando ter rompido com esta rede; um ataque que viola a letra dos acordos de distensão russo-turcos, ao mesmo tempo que expõe a submissão do movimento jiadista à autoridade pessoal de Recep Tayyip Erdoğan.
Acima de tudo, o Presidente Erdoğan abriu uma frente com o Presidente francês, Emmanuel Macron, a quem não para de insultar, mais ainda do que à Chancelerina Merkel três anos atrás. Esta querela (briga-br) é muito mais importante do que parece: ela diz respeito ao fundo do problema.
Após inúmeras voltas e reviravoltas, Recep Tayyip Erdoğan tenta responder à questão existencial da Turquia definindo-a como a pátria dos Irmãos Muçulmanos. Contrariamente a uma ideia comummente admitida, ele abandonou as fantasias neo-otomanas do seu antigo Primeiro-Ministro, Ahmet Davutoğlu (agora passado à oposição); da mesma forma renunciou aos espaços naturais que são, para ela, o mundo turcófono e o Ocidente (União Europeia/ OTAN); ele espera estender o seu poder por todo o mundo muçulmano, apegando-se ao princípio de uma religião de Estado da qual pretende tornar-se o Califa.
Importa aqui lembrar que Maomé não era como Cristo, um pequeno carpinteiro. Ele foi um homem político e um general vitorioso sendo ao mesmo tempo um líder espiritual. Na altura da sua morte, os seus discípulos dividiram-se e lutaram entre si. O «califa» (ou seja, o seu «sucessor») herdou o seu poder temporal, não espiritual. Muitos dos califas do passado, claramente não acreditavam em Deus. No fim da Primeira Guerra Mundial, o «califa» era o soberano otomano, residindo em Constantinopla (Istambul). O ideal da Confraria dos Irmãos Muçulmanos é de restabelecer o califado (o poder temporal do Profeta) por meio da lei do seu tempo, a Sharia. Como os Europeus no século XVI, os Irmãos Muçulmanos pensam que um povo deve obrigatoriamente seguir a religião do seu soberano; uma visão do mundo radicalmente oposta ao princípio da liberdade de consciência estabelecido pela França a partir da abjuração de Henrique IV (1593 [2]) ao compromisso com o laicismo (1905 [3]). Ao fazê-lo, Recep Tayyip Erdoğan e a Confraria tentam conseguir um regresso ao passado arrasando a herança de Mustafa Kemal Atatürk, o fundador da Turquia moderna.
Foi pois com toda a lógica que o Presidente Erdoğan escolheu o seu homólogo francês como o principal dos seus adversários. O resultado do combate será definido pelos Estados Unidos. Ou, eles defendem o legado britânico dos «Pais Peregrinos» do Mayflower (Joe Biden, Justin Trudeau), ou o dos imigrantes do velho continente (Donald Trump). No primeiro caso, irão acima de tudo manter a Turquia no seio da OTAN; no segundo, irão defender o seu princípio de coexistência religiosa até ao fracasso do projecto do califado.
[1] Killing Orders : Talat Pasha’s Telegrams and the Armenian Genocide, Taner Akçam, Palgrave Macmillan, 2018 ; Ordres de tuer : Arménie 1915, Taner Akçam, CNRS éditions, 2020.
[2] Para se tornar Rei de França, o Príncipe Henrique de Navarra abjurou da sua religião na Basílica de Saint-Denis e converteu-se ao catolicismo. Em troca, proclamou a liberdade de religião para todos os seus súbditos apesar de ele próprio não poder desfrutar dela.
[3] Depois de muitas reviravoltas, os Republicanos proclamaram a liberdade de consciência. Com base nisso, legislaram sobre a separação entre o Estado e as Igrejas (1905). No entanto, esta não é completa : resta um controle do Estado sobre o sacramento do casamento em algumas religiões. A opção escolhida para garantir a igualdade de direitos aos casais homossexuais, para criar um “casamento gay”, é deste ponto de vista um erro histórico. A continuidade com o movimento de laicização da sociedade teria, pelo contrário, almejado que se colocasse o casamento heterossexual na esfera privada; uma opção que havia sido aceite pela Igreja de França e que defende o Papa Francisco actualmente.