Brexit ou os enxovalhos da democracia

Brexit ou os enxovalhos da democracia
Brexit ou a saga da saída do Reino Unido da União Europeia é um episódio claro, e muito sério, de como é tratada a democracia, ou o que dela resta, no Ocidente que se afirma como fiel depositário dos direitos humanos e dos valores civilizacionais. A uma decisão límpida e democrática, como a assumida pelos britânicos no referendo sobre a permanência ou não na União Europeia, seguiu-se uma enxurrada de manobras, chantagens, humilhações, golpes sujos e baixos – sempre desprezando os cidadãos – para tentar reverter a decisão da consulta ou, pelo menos, tornar as suas consequências exemplares para qualquer país que deseje seguir pelo mesmo caminho.

Boris Johnson tem as costas largas. Acompanhando a cobertura mediática dominante dir-se-á que foi com o seu aparecimento em cena que o processo entrou num turbilhão de acontecimentos onde se perdem as referências quanto à sua origem e legitimidade. É interessante notar que, a propósito de Johnson, raramente se sublinha o facto realmente mais controverso: o modo como essa personagem saída da reforçada componente fascista do neoliberalismo chegou a chefe do governo de Londres.

Na verdade, na sempre tão elogiada «mais antiga democracia parlamentar» é possível que um primeiro-ministro seja apurado numas eleições «primárias» intercalares de um partido sem que seja devolvida a voz ao povo, apesar de a situação geral no país ter sofrido um verdadeiro terramoto desde as anteriores eleições gerais. Mais inusitado ainda: quando, finalmente, voltou a falar-se na necessidade de chamar o povo a votos a ideia partiu de quem antes não desejava eleições gerais – Johnson – e foi contrariada pelos que tinham passado as últimas semanas a pedi-las. Se algum leitor ou leitora encontrar a bússola da democracia em todo este imbróglio fique ciente de que é alguém com uma invulgar capacidade para encontrar agulha em palheiro.

A trama expõe um enxovalho da democracia, apenas mais um e nem sequer o mais rocambolesco e antidemocrático do processo de Brexit.

Estratégia de Calimero

Desde que Boris Johnson entrou em cena o desfecho do Brexit estreitou-se para uma dicotomia elementar: saída sem acordo – a preferida do primeiro-ministro britânico em funções; ou saída renegociada garantida por um adiamento para lá da data fatal: 31 de Outubro. No universo político parlamentar britânico esta segunda vertente contou com o apoio oportunista dos activistas anti-Brexit, esperando tirar partido de um ainda maior enovelamento do processo provocado por uma hipotética reentrada em campo das instituições não eleitas da União Europeia. No horizonte têm sempre a esperança de uma brecha para poderem invalidar a vontade popular.

A dicotomia é elementar mas completamente falsa. E todos sabiam disso em Londres antes de a formularem, porque muito dificilmente a componente autocrática e determinante da União Europeia aceitaria novas negociações. Já adiara uma vez a data do Brexit, não iria fazê-lo de novo. Coisa que, do outro lado do Canal, Macron se apressou a confirmar.

Por linhas tortas, Johnson ficou com a razão do seu lado ao cabo das mais recentes convulsões internas britânicas: propôs que o melhor seria convocar eleições. Não por ser um democrata, mas porque lhe convém para se manter no lugar, apostando o tudo ou nada numa vaga de fundo nacionalista recorrendo à estratégia de Calimero1 – a da vitimização e do injustiçado. Meios não lhe faltam: mediáticos e financeiros, uma vez que se tornou claro o alinhamento da City londrina com a componente fascista do neoliberalismo. Mais constrangedor para a democracia é o facto de até a direcção trabalhista de Jeremy Corbin, defensora de eleições gerais, ter dado o dito por não dito vendo-se enredada numa amálgama onde pontificam os mais descarados manobrismos políticos.

Apostar na convocação de eleições – e sua rejeição pelos adversários - foi também uma maneira que Johnson encontrou para que o impasse se arraste sem outra escapatória até 31 de Outubro, a da saída não negociada. É certo que existe um «acordo» de Brexit, imposto violentamente pelas estruturas não eleitas da União Europeia ao governo de Theresa May. O tal «acordo» que desencoraja qualquer país de se embrenhar num processo de saída, por muito que o povo o deseje.

De qualquer modo, depois de 31 de Outubro o governo de Londres é livre de aplicar o «acordo» estipulado por Bruxelas ou de fazer vingar a opção não negociada. Johnson optará então por esta, no caso de ser ainda primeiro-ministro. O que poderá acontecer – para já conseguiu margem de manobra com mais um enxovalho da democracia: a suspensão do Parlamento no país habitualmente reconhecido como o farol da democracia parlamentar. E a rainha, que dizem não servir para nada, pelo menos para isto serviu, como em qualquer monarquia absoluta.

A mão de Bruxelas

A actual fase britânica do processo nasceu do fracasso total do governo May decorrente da humilhação absoluta perante Bruxelas a que aceitou submeter-se.

A atitude dos órgãos não-eleitos da União Europeia perante os resultados do referendo democrático no Reino Unido foi a de os subverterem e virar as consequências contra quem tomou a decisão. Uma lição para ficar sempre presente, uma jurisprudência capaz de inibir qualquer tentação de retirada. Pois se uma das grandes potências da União foi tratada desta maneira o que estaria reservado a qualquer outro Estado membro sem o mesmo estatuto?

Entre Bruxelas e Londres não houve negociações, houve imposições unilaterais engendradas para que as consequências da saída fossem avassaladoras para a população britânica. May foi consumida pelo enredo de humilhações e abriu caminho para o florescimento das tendências populistas, alimentadas pelos meios políticos e financeiros a quem são úteis. Este quadro fez degenerar o próprio conceito de Brexit, agora propagandisticamente associado a um movimento nacionalista e populista que não foi, de facto, o mais determinante nos resultados do referendo.

A mão de Bruxelas limitou-se a espalhar ordens e a alimentar as discórdias latentes em Londres, dando gás aos que pretendiam reverter os resultados do referendo ou promover uma segunda consulta. Dentro do espírito de fazer pagar ao povo a ousadia da decisão que assumiu.

Bruxelas, para que conste enquanto a manipulação da história não consegue iludir totalmente a realidade, foi a origem de todo o imbróglio do Brexit ao rejeitar e subverter os resultados do referendo britânico, ou seja, a vontade popular.

Este foi, até ao momento, o maior dos enxovalhos da democracia no folhetim do Brexit.

A origem nua e crua do Brexit

O povo britânico, como pode acontecer com qualquer outro da União a quem seja dada a oportunidade de manifestar opinião, teve razões para votar como votou.

É isso que pretende esconder-se através da exploração mediática e institucional das convulsões políticas e das contradições tácticas entre as elites político-financeiras.

A maior mistificação em torno da saída britânica da União Europeia é a de que corresponde aos interesses dos ricos da sociedade, assimilados na figura da City de Londres.

Ora os ricos não ganham eleições, não obtêm maiorias em referendos se estiverem unicamente os seus interesses em jogo.

A maioria do referendo britânico não foi construída por comportamentos diletantes de castas, mas sim por razões antagónicas: os sectores menos favorecidos do Reino Unido sabem que as suas condições sociais difíceis, em muitos casos degradantes, resultam das políticas gerais emanadas de Bruxelas. Os eleitores votaram contra a austeridade, o aprofundamento das desigualdades, a deterioração das condições laborais, a precariedade e outras imagens de marca da União Europeia.

No caso britânico, o início da degradação das condições de vida e do aumento avassalador da pobreza coincidiu com a entrada na Comunidade Económica Europeia e o início dos consulados ultra-liberais de Margaret Thatcher, ocorrências que destruíram o Estado social britânico.

Margaret Thatcher, é importante lembrá-lo, foi uma dirigente fundamental na neoliberalização absoluta da Comunidade Económica Europeia e nas incidências que conduziram ao Tratado de Maastricht e à aplicação pura e dura das doutrinas económicas que formataram a actual União Europeia.

Os britânicos são dos povos que mais estão em condições de identificar a degeneração das suas condições de vida com a convergência entre o neoliberalismo e a pertença à União Europeia. O aumento avassalador da pobreza, a deterioração das condições de habitação, a degeneração dos serviços públicos básicos, incluindo saúde e educação, determinaram o resultado do referendo desfavorável à União Europeia. Acontece que, na fase actual de luta entre as correntes fascistas e globalistas pela sobrevivência do capitalismo neoliberal, os cavalheiros da City apostaram no Brexit.
Ora as coincidências de voto não determinam identificações de interesses. Essa é outra mistificação utilizada para tornar ainda mais inextrincável o imbróglio do Brexit. O que determinou os resultados do referendo foi a vida difícil da generalidade dos cidadãos, não os caprichos dos especuladores. E se a guerra entre castas financeiras é exposta, no fundo, como a razão de ser do Brexit, esse é outro dos enxovalhos da democracia.

O referendo britânico foi uma contundente derrota da União Europeia. É isso que Bruxelas está incapaz de aceitar e cuja repetição tentará impedir através de todos os meios, preferencialmente não-democráticos.

É isto que está em jogo no Brexit: a União Europeia confrontada com a revolta popular perante as suas políticas. O resto, Johnson, golpes políticos baixos, chantagens sobre deputados, até a suspensão do Parlamento considerado o ex-libris da «democracia parlamentar» são subprodutos dessa situação primordial.

Não existe, de facto, compatibilidade entre a União Europeia e o funcionamento pleno dos mecanismos democráticos. Daí os enxovalhos da democracia de que a novela do Brexit é uma manifestação.





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