A dialéctica do autoritarismo
Actualmente assistimos na Índia a uma notável inversão da razão. Quanto mais as pessoas comuns sofrem com o impacto da desmonetização de Modi, mais ele é louvado pela "coragem" que mostrou ao empreende-la. Uma medida económica deveria ser, e normalmente é, julgada na base do benefício que traz ao povo – e qualquer medida que traz sofrimento ao povo é escarnecida pela mesma razão. Contudo, o que descobrimos no caso presente é exactamente o oposto: quanto mais sofrimento a desmonetização traz ao povo, mais ela é aplaudida pela sua sabedoria e coragem. E isto é feito não apenas pelos habituais ideólogos reaccionários empedernidos do [partido] BJP; é feito por muitos comentadores, incluindo mesmo um grupo de altos académicos não residentes na Índia que argumentaram nestes moldes e recorreram assim a tal inversão da razão.
Naturalmente, se aqueles que argumentam deste modo mostrassem que a desmonetização seria benéfica a longo prazo, e com base nisso argumentassem que as dificuldades do povo seriam apenas transitórias, então poderia ter havido alguma substância nos seus elogios encomiásticos a Modi. Eles poderiam então argumentar com alguma justificação que Modi tinha de ser louvado pela sua coragem em arriscar-se à ira popular durante o seu período de transição. Mas nenhum dos que aplaudem a "coragem" de Modi refutou, ou mesmo tentou refutar, os críticos que mostraram que a desmonetização não pode alcançar os objectivos que o governo mencionou como justificação. Portanto, a questão de ser benéfica no longo prazo simplesmente não foi levantada. O louvor a esta medida é então estabelecido na base de pouco mais excepto o facto drástico de que trouxe sofrimento ao povo. Eis porque as suas afirmações constituem um caso de pura e simples inversão da razão.
INVERSÃO DA RAZÃO
O presente caso de inversão da razão é ainda pior do que aquele satirizado por Bertold Brecht quando escreveu: "O governo parece que perdeu a confiança do povo; por que ele não demite o povo e elege um outro?" O caso actual não é o de um governo que perde a confiança do povo e ainda assim retém o poder em nome do povo – o caso é o de um governo a provocar sofrimento agudo ao povo e a ser louvado por este mesmo facto.
Uma tal inversão da razão é fundamentalmente
anti-democrática. Ela decorre de uma comutação de foco do povo para o líder. Esta comutação reduz o povo, no melhor dos casos, ao estatuto de um mero pano de fundo contra o qual o feito heróico do líder tem uma oportunidade de ser exibido. Uma vez que o foco está no líder, o qual, como centro de atracção de todos os olhos, deve exibir seus feitos heróicos, a tendência é inevitavelmente para o "choque e pavor", para ofuscar toda a gente através da tomada de decisões extremas as quais são tanto chocantes como inspiradoras de pavor. E precisamente porque estas decisões são extremas, provocando graves adversidades ao povo, a sua própria natureza extrema as faz parecerem particularmente heróicas.
A comutação do foco do "povo" para o "líder" leva necessariamente a questão da tomada de decisão para fora das fronteiras da "racionalidade". Decisões "racionais" são baseadas em cálculos cuidadosos, os quais procuram maximizar algum objectivo (ou o que economistas chama uma "função objectivo") dentro de um conjunto de constrangimentos que são dados. "Decisões racionais" naturalmente não são sinónimas de decisões "boas" ou "morais" ou "éticas". Quando um "investidor" maximiza seus ganhos económicos entregando-se à especulação, ele está a actuar "racionalmente", muito embora a especulação não seja necessariamente uma actividade "desejável" ou saudável. Mas um líder a tentar "chocar e apavorar", para estabelecer sua imagem "heróica", a fim de justificar ser o centro de atenção, não faz cálculos cuidadosos. Ele orgulha-se com o facto de não fazer cálculos cuidadosos mas ter a coragem de tomar decisões que outros são demasiados tímidos para tomar. Em suma, ele orgulha-se da sua irracionalidade.
Naturalmente, mesmo uma "decisão racional" pode parecer irracional em retrospectiva. Isto acontece porque ao tomar a "decisão racional" os constrangimentos podem ser sido compreendidos erradamente, ou a eficácia de instrumentos particulares em atingir objectivos pode ter sido estimada de forma errada, e assim por diante. Em suma, pode haver erros de dados devido aos quais decisões tomadas "racionalmente" com base nos dados disponíveis podem em retrospectiva revelar-se irracionais. Mas tal "irracionalidade", decorrente de erros de dados dissimulados mesmo nos cálculos mais cuidadosos que se supõe produzirem "decisões racionais", é muito diferente de se abster totalmente de cálculos cuidadosos e da tomada de uma decisão racional substituindo-a pelo "choque e pavor". Regimes autoritários da espécie que Narendra Modi está a liderar tendem a ser "irracionais" neste sentido fundamental: eles são irracionais não no sentido de que as suas decisões "racionais" se revelam erróneas devido a erros de dados, e portanto aparentemente irracionais em retrospectiva, mas porque elas censuram a "racionalidade" como timidez, como sendo indigna do líder que veste o manto de um herói.
A questão muitas vezes levantada é: qual foi o motivo de Narendra Modi para por em prática a referida desmonetização maciça? Perguntaram-me muitas vezes isso em reuniões onde tenho falado acerca da desmonetização. Aqueles que perguntam concordam em que o efeito da desmonetização seria dizimar o "sector informal", o qual representa cerca da metade do produto total da economia e mais de oitenta por cento do seu emprego total, sem fazer mossa na economia negra ou nas actividades terroristas, as quais supostamente eram os seus objectivos primários. De facto esta questão adquire pertinência, nesta visão, por esta mesma razão: uma vez que tal dizimação da "economia informal" terá um enorme custo eleitoral do governo BJP, por que Modi empreendeu esta desmonetização maciça?
A resposta esperada por aqueles que perguntam isso jaz em um de dois possíveis reinos: ou que houve "erros de dados" a viciarem sua tomada de decisão racional para alcançar seus objectivos declarados, ou que ele tinha algum outro objectivo não especificado (isto é, uma função objectivo diferente daquela que ele havia publicamente apregoado). Em ambos os casos é assumido que ele estava a actuar "racionalmente" ao invés do que com "irracionalidade" heróica. Mas a atribuição de "racionalidade" a uma tal decisão é em sim mesma injustificável. Ninguém decide, na base de cálculos racionais, desmonetizar da noite para o dia 86 por cento das divisas de um país que é predominantemente utilizador de papel-moeda. Tais decisões são necessariamente "irracionais", empreendidas em busca de um heroísmo que é uma característica necessária de um regime autoritário, isto é, de um regime onde o "povo" foi suplantado pelo "líder" como o foco da atenção.
Uma marca inconfundível desta "irracionalidade" é a recusa absoluta em emendar, ajustar, ou fazer alterações na política em vista do sofrimento do povo, ou mesmo a discutir com outros o que pode ser feito para mitigar o sofrimento. Uma decisão "racional" é aquela que necessariamente está aberta a emendas. Quando erros de dados se tornam manifestos, uma decisão racional tomada para alcançar algum objectivo é emendada pois torna-se claro que ela não poderia alcançar este objectivo, ou na medida prevista. Mas uma decisão "irracional" não recebe emenda, uma vez que não é baseada sobre qualquer cálculo racional, mas é destinada só a destacar o heroísmo do líder. A recusa de Modi em conversar com partidos políticos sobre caminhos e meios para aliviar o sofrimento do povo, ou para modificar a medida original a fim de aliviar este sofrimento, é em si própria um sintoma de "irracionalidade". Obviamente é o seu prestígio ao invés do sofrimento do povo que tem prioridade do seu ponto de vista. O foco, em suma, está no "líder" ao invés de estar no "povo".
Esta mudança de foco é tipicamente acompanhada pela afirmação de que o próprio "povo" aprecia o acto heróico do "líder" mesmo quando este lhe causa adversidades. Por exemplo: um argumento avançado não só pelos ideólogos do BJP como também por vários outros, incluindo mesmo os altos académicos não residentes na Índia mencionados anteriormente, é o seguinte: uma vez que não há protestos sérios do povo contra a desmonetização do governo, apesar do seu sofrimento, o povo está a aceitar esta medida para o maior bem social que ela produz.
ARGUMENTO DÉBIL
Obviamente este argumento é débil. Assim como a ausência de protestos contra a opressão não indica uma aceitação da opressão, igualmente a ausência de protesto contra a medida da desmonetização não sugere que esta medida é aceite. Porque não há protestos mesmo quando o povo está a sofrer é matéria que tem de ser investigada à parte. Mas a ausência de protestos certamente não constitui uma justificação da própria medida.
E na medida em que a ausência de protestos indica uma crença na validade da medida, isto sugere apenas que a inversão da razão que circunda a desmonetização não está confinada à elite dirigente mas penetra mesmo segmentos daqueles que são por ela prejudicados. Muitos deles também, uma vez que não podem acreditar que tal tormento lhes possa ser imposto gratuitamente, chegam a pensar que o seu sofrimento deve estar a servir a alguma finalidade mais elevada. E ao aceitarem isto também eles louvam pela sua audácia o próprio governo que lhes impôs o sofrimento. Em suma, a operação "choque e pavor" do governo tem êxito, pelo menos ao instilar "pavor" em segmentos daqueles que são as suas vítimas.
A menos que esta bolha do "choque e pavor" seja perfurada e o povo se torne consciente do facto de o seu sofrimento não servir a qualquer propósito mais elevado, mas que ao contrário constitui apenas uma imposição gratuita sobre ele, a mudança de foco do "povo" para o "líder" estabelecerá uma dialéctica de transição da democracia para o autoritarismo que é extremamente perigosa.
[O orixinal atópase en peoplesdemocracy]
-------------------------------------------------------------------------------------------------
Nota da Fundación Bautista Álvarez, editora do dixital Terra e Tempo: As valoracións e opinións contidas nos artigos das nosas colaboradoras e dos nosos colaboradores -cuxo traballo desinteresado sempre agradeceremos- son da súa persoal e intransferíbel responsabilidade. A Fundación e mais a Unión do Povo Galego maniféstanse libremente en por elas mesmas cando o consideran oportuno. Libremente, tamén, os colaboradores e colaboradoras de Terra e Tempo son, por tanto, portavoces de si proprios e de máis ninguén.