Landras ou castanhas



Non quod est in actis, non est in hoc mundo

A História, como disciplina humana, assenta o conhecimento do passado nos textos escritos. Mas os registos escritos nem sempre são completamente fiáveis e, por vezes, a penas contam o que o “escribidor” quer.

Aliás, para iluminar os ámbitos escuros do passado, para os quais carecemos de consignações escritas (pré- e proto-história), hemos acudir a outras disciplinas como a Arqueologia, a Botânica, a Química... E mesmo a áreas de saber consideradas pouco fiáveis como as lendas e os mitos. Infelizmente, com frequência estas disciplinas são ignoradas para se centrar exclusivamente nos registos escritos. E esta reverência polas fontes escritas converte aos Romanos nos “pais” de todos os logros da civilização occidental. Todo, todo o que não esteja registado por escrito, não existe… nem existiu antes. E o mais grave é que essa citação pode chegar a converter-se no alicerce duma hipótese que se transmuta em verdade irrefutável, a base de ser repetida.

Existem dezenas, centos de casos desta sorte. Eu vou-me centrar num concreto: A afirmação de Strabo sobre a dieta dos montanheses do noroeste da Hispania que comiam landras ou bolotas.

Aplicando o princípio dos textos como fonte histórica, vejamos, pois, o texto:

οἱ δ᾽ ὄρειοι τὰ δύο μέρη τοῦ ἔτους δρυοβαλάνῳ χρῶνται ξηράναντες καὶ κόψαντες, ... χρῶνται δὲ καὶ ζύθει [Strabo livro 3, cap.3, 7. Texto tirado de Perseus Project]

Tradução destes treitos da Geografia: … os montanheses dispõem de castanha (dryobalano), secando-a e golpeando-a, dous terços do ano … Dispõem também de cerveja (literalmente fermento de cevada).

O quid da questão, para além doutros assuntos secundários como o da cerveja ao que voltarei, é o nome do alimento que os montanheses tomam, isto é “dryobalano”, traducido invariavelmente por “bolotas” ou “landras”. Eu proponho o termo “castanha”, baseando-me na análise que segue.

Este termo grego (δρυοβαλάνῳ, em dativo), segundo o dicionário de grego clássico Bailly, está apenas testemunhado nesta passagem da obra de Strabo Geografia. O autor do dicionário dá-lhe o significado de gland de chêne, landra ou bolota de azinheira. Convém lembrar que os significados das palavras escassamente testemunhadas nos textos antigos, e não tão antigos, são altamente conjecturais, tirados a partir do contexto, literário ou cultural. Uma inadequada interpretação do contexto pode levar a um significado inapropriado. Isto é o que acontece neste caso.

A palavra δρυοβαλάνος (em nominativo) está composta de dous termos. O primeiro, “drys” que significa árvore, na primeira (e geral) acepção, e azinheira, na segunda acepção. O segundo termo, “bálanos”, com o significado de glande na primeira acepção e, por analogia 1: datte (tâmara); e 2. “Διóς βάλανος” chataigne (castanha). A seguir dá-lhe os significados doutros seres (peixes) ou objectos com aspecto de glande.

No grego koiné (clássico) existe um termo para castanha: Διóς βάλανος, landra de Zeus. O termo faz referência ao fruto duma árvore que parez dedicada ao deus, ainda que essa era, propriamente, a azinheira. Com o que voltariamos às landras de azinheira. Semelha que havia certo grau de confusão conceptual quanto à denominação desse fruto seco, mal conhecido dos gregos.

Como explicação a esta confusão, a possibilidade dum erro de cópia é digna de ter em conta, pola similitude gráfica e semântica entre o termo para castanha (διóς βάλανος) e o termo para landra de Strabo (δρυοβαλάνος), também um possível erro de transcrição ao ditado (como se acostumava a copiar) pola proximidade fónica de ambas as vozes... mas estas explicações ficam no âmbito da elucubração. Procuremos, pois, outras explicações.

Uma vez consultados vários dicionários de Grego clássico podemos apreciar que o termo “bálano” serve para designar qualquer fruto com certa semelhança á forma do glande e, por extensão, de forma redondeada (tipo de noz). Mas polo geral é interpretado (insisto no termo: interpretado) como landra ou bolota sem maior análise ou crítica.

Esta interpretação nasce da aplicação conceptual para o caso dos “montanheses” dos que fala Strabo, duma realidade apropriada para outras latitudes. E essa realidade, alheia por completo às terras húmidas e altas do noroeste, está referida às áreas de clima “mediterráneo” da Hispania, nomeadamente a meseta norte, ou da Hélade. Tradicionalmente, nessas zonas onde a azinheira é espécie endémica, a sua utilização para elaborar farinha e, a partir dela, “pão” é costume antigo. E esse costume tem pervivido até o século XX e ainda hoje o reinvindicam movimentos ecológicos e naturistas. Mas eis que a azinheira (quercus ilex), árvore da família da fagáceas, tem uma distribuição restringida a áreas com pouca humidade e altura limitada. Em definitiva, a azinheira é uma espécie, de folhas coriáceas e perenes, característica de zonas de clima “mediterrâneo”.

Pola contra na área dos montanheses (οἱ ὄρειοι), que ocuparia o norte da Península Ibérica e as áreas da Gallaecia romana, a espécie endémica é o quercus robur, que chamamos carvalho, de folha caduca e com landras dum amargor próximo á toxicidade pola alta presença de taninos. Convertê-las num alimento requeriria dum complicado porcesso de manipulação que não compensa a sua energia potencial como alimento, máis tendo em conta que, nessa mesma distribuição geográfica, pode achar-se uma árvore de frutos outonais bem mais aproveitáveis e saborosos: a castanea sativa ou castinheira.

Ao chegarmos a este ponto batemos com a convicção instalada na comunidade “científica” de historiadores de que a castinheira chegou á Galiza de mão dos romanos. Esta afirmação, sem dúvida baseada no treito citado de Strabo, pode ler-se ad nauseam em qualquer artigo, escrito, livro ou publicação electrónica relacionada com as castanhas.

Mas que dizem disso os botánicos. Passo a citar a “Guia para la conservación genética y utilización del castaño” de Josefa Fernandez López e Ricardo Alia:

Se cree que la especie sobrevivió en varios refugios del sur de Europa durante las glaciaciones ... en la Península Ibérica, en ... Italia y en las orillas del mar Tirreno
. (a negra é minha).

Algo similar dizem Rodríguez Guitián, Ramil-Rego e outros no seu artigo “Efectos de la actividad humana sobre la diversidad de los ecosistemas forestales en las montañas del Norte de Lugo”:

El origen de algunas de estas especies se ha vinculado ... en otros casos (castanea, juglans, pinus pinaster) a la acción directa del hombre, hipóstesis invalidada hoy en día considerando los datos paleobotánicos (Ramil 1992, 1993; Rodríguez et alii 1996) (de novo a negra é minha).

Também venhem dizer que hai rastos de castinheiras desde hai mais de 13.000 anos, concretamente na Galiza. Os autores deste artigo dizem também que se alcança a mínima extensión de bosque al inicio de la romanización!! Mesmo vinculam a presença da castinheira com o Pleistoceno, idade da Terra compreendida entre 2,588 milhões e 11,5 mil anos atrás, aproximadamente.

Os dados aportados polos botánicos confirmam a presença da castinheira na Galiza em épocas bem recuadas no tempo e que essa presença não deve nada á acção “civilizadora” do Império Romano.

Por outra parte, parece-me significativo fazer notar que os “montanheses”, que também tinham cerveja (χρῶνται δὲ καὶ ζύθει), eram, por isso mesmo, conhecedores dos cultivos cerealísticos, nomeadamente a cevada, e do processo de elaboração da bebida. Assim que o consumo das castanhas (landras nas erradas versões habituais) não era a penas um complemento alimentício de povos bárbaros –como parez insinuar o nosso querido Strabo– mas uma escolha razonável uma vez avaliadas as propriedades alimentícias das castanhas e o investimento de esforço para a consecução da colheita.

Acho que é tempo de incorporar ao nosso acervo cultural e referencial as investigações, qualquer que for o idioma da sua publicação, que desterram velhos mitos e lugares comuns erróneos Não a penas por amor à verdade e aos dados científicos. Mas também porque este lugar comum em concreto situa numa posição subordinada os nossos antepassados e os seus usos e costumes.