O pacote de estímulo de Biden

O pacote de estímulo de Biden
Ainda antes de tomar posse, Joe Biden, o novo presidente dos EUA, anunciou um pacote de estímulo de US$1,9 milhões de milhões (trillion), dos quais um milhão de milhões será destinado a transferências para os trabalhadores. Como o PIB dos EUA para 2020 foi calculado em US$20,8 milhões de milhões, a dimensão deste pacote de salvação de Biden representa quase 10% do PIB atual dos EUA. Isto para além do pacote de estímulo, também no montante de 10% do PIB, que Trump anunciou há tempos no contexto da pandemia. Com efeito, o pacote de Biden destina-se a prolongar o apoio direto que tem sido oferecido atualmente aos trabalhadores nos EUA durante um período mais longo e a aumentar a dimensão desse apoio, apesar de a economia dos EUA ter começado a recuperar do estado abismal a que ficou reduzida em resultado da pandemia, com uma taxa oficial de desemprego a cair para os 6,7% em dezembro depois de um pico de cerca de 15% em abril (algo que leva os conservadores a dizer que este apoio já não é necessário).

O pacote de Biden, embora anunciado como de recuperação da Covid-19, obviamente é mais do que isso. Representa um salto nas despesas sociais cujo âmbito ultrapassa em muito o contexto imediato da pandemia. Para além disso, ultrapassa a ajuda de US$600 aos contribuintes, aprovada pelo Congresso dos EUA no mês passado com mais US$1400 a US$2000. Também prevê um aumento de 300 a 400 dólares por semana, no subsídio de desemprego, até ao fim de setembro, para os 18 milhões de americanos que estão atualmente a receber subsídio de desemprego e um aumento dos salários mínimos para 15 dólares por hora. A moratória sobre despejos em toda a nação que se previa expirasse no final de janeiro é agora estendida até ao fim de setembro. Para além disso, há uma série de outras despesas contidas no pacote, relacionadas com a distribuição de vacinas, a ajuda a pequenas empresas, a instituições de ensino, etc.

Mais surpreendente do que as despesas é a forma como Biden propõe financiar este pacote, ou seja, essencialmente, tributando os ricos em vez da população em geral. Entre outras medidas, prevê-se tributar os ganhos de capital juntamente com os [demais] rendimentos e o escalão mais alto do imposto sobre o rendimento aumentar para 40%. Em suma, a estratégia de Biden é tributar os ricos para financiar o aumento de transferências para os trabalhadores, coisa que a esquerda defende desde sempre. Com efeito, o pacote de Biden tem sido considerado por muitos comentadores como indicador de uma viragem para a esquerda por parte dele. Esta viragem não é um fenómeno repentino; esteve presente durante toda a sua campanha presidencial conforme assinalaram muitos importantes jornais americanos e revistas. Biden mantém-se leal às promessas da campanha que fez, em vez de as abandonar oportunistamente depois de ser eleito.

Contudo, Biden, ao contrário de Bernie Sanders, o candidato presidencial que derrotou para conquistar a nomeação do Partido Democrata, não é de esquerda; na verdade, nunca se intitulou como tal. Enquanto vice-presidente de Barack Obama, tinha a mesma tendência ideológica de Obama e que estava longe de ser de esquerda. Então, como explicar esta nova atitude? Ela não é só uma posição oportunista para ganhar as eleições, senão teria recuado calmamente para uma posição centrista depois de ser eleito.

Esta atitude diferente é um indicador da situação em que ele está metido, uma situação de crise capitalista. Ignorar a crise, fingir que ela não existe, seria totalmente contraproducente. Ignorar a crise foi a atitude de Hillary Clinton durante as eleições presidenciais anteriores nos EUA que foi tão contraproducente que levou à sua derrota e levou Trump ao poder. A vitória de Trump não se deu por o eleitorado se tornar repentinamente de extrema-direita; deveu-se ao facto de a economia estar numa crise que provocou miséria aguda para os trabalhadores, coisa que a burguesia liberal, em vez de enfrentar, nem sequer tomou em consideração. Biden não está a repetir o mesmo erro. A crise, como ele reconhece, é real e grave; é independente e anterior à pandemia que, é claro, a agravou substancialmente.

Obviamente, tem de se fazer qualquer coisa quanto a isso; e é óbvio para muita gente que prosseguir apenas com as políticas pró-corporações para estimular o chamado "espírito animal" dos capitalistas, não irá funcionar. Como a crise é causada por uma deficiência da procura agregada, para a ultrapassar é necessária injeção de procura na economia e o meio óbvio de fazer isso, especialmente dado o contexto da pandemia, é através de transferências para a população trabalhadora, i.é., através da execução de uma agenda redistributiva de esquerda. É isto que força Biden a deslocar-se para a esquerda, apesar das suas predileções ideológicas centristas.

A América corporativa não vai gostar do pacote de Biden; e a finança em breve mostrará o seu desagrado. Claro, os EUA, enquanto principal país capitalista mundial, cuja divisa ainda é considerada "tão boa como ouro", tem um grau de liberdade vis-à-vis a finança que outros países, mesmo importantes países capitalistas, não têm. Mas esta posição especial não perdurará muito tempo se continuar a atual direção política, altura em que Biden será confrontado com uma escolha: ou se mantém firme e, por isso, consolida mais o seu desvio para a esquerda, ou rende-se aos ditames do capital, em especial da finança globalizada.

Mas comparemos a estratégia de Biden com a de Modi na Índia, que implementou uma política totalmente insensível em relação à população. Mesmo medidas mínimas de ajuda, como não exigir uma redução séria das prerrogativas das classes fundiárias, foram abandonadas. No contexto da pandemia pelo menos, que toda a gente reconhece como uma situação excecional, o governo podia ter dado passos para ajudar a população trabalhadora sem despertar a habitual oposição da finança globalizada. Mas a insensibilidade do governo de Modi tem sido tal que até evitou essas medidas; e continua apostado a implementar a agenda da oligarquia corporativa-financeira à custa da população, o que é ineficaz na ultrapassagem da crise económica do país assim como é prejudicial para o povo, cuja maior parte, formada pelos kisans , protesta às portas de Delhi neste frio rigoroso.

O governo de Modi não só anunciou um confinamento total com quatro horas de antecedência, mas, ao contrário até de Trump, não impôs uma moratória sobre despejos, o que transformou milhões de trabalhadores migrantes não só em desempregados, e sem rendimentos, como também em sem abrigo, duma só penada, forçando-os a penosas viagens de centenas de quilómetros para as suas aldeias em busca de um teto. De novo, ao contrário até do que fez Trump, não proporcionou nenhum alívio fiscal à população trabalhadora. Partidos políticos, grupos da sociedade civil, e grupos de intelectuais, continuam a exigir a concessão de 7000 rupias por mês a todos os agregados familiares, durante alguns meses; mas tudo isso cai em orelhas moucas.

Quando, por fim, apareceu um "pacote de emergência" em duas prestações, isso veio a revelar-se uma fachada: uma misturada de esquemas já existentes no orçamento, aprovados antes de a pandemia ocorrer; de promessas de provisão de crédito; etc. Dos 2 mil milhões de rupias anunciados como o total do pacote de emergência, a parte de ajuda fiscal que deveria ser contada como ajuda, foi apenas de 190 mil rupias (há quem calcule que foram ainda menos, 165 mil rupias), o que significa cerca de 1% do PIB.

Contudo, acontece que nem isso foi gasto. Entre abril e novembro de 2020, as despesas totais do governo central aumentaram apenas em 4,7% em relação ao período correspondente de 2019. A taxa de inflação durante o mesmo período, numa base de ano a ano, foi de mais de 6%, o que significa que, durante o auge da pandemia, quando as despesas do governo central deveriam ter aumentado substancialmente, em termos reais diminuíram.

Não contente com o passo perverso de reduzir a sua própria despesa, o governo central esgotou simultaneamente os governos estaduais dos fundos que lhes eram legitimamente devidos enquanto compensação do GST (Imposto sobre Bens e Serviços). Em resultado disso, a Índia bem pode ser um dos poucos países do mundo onde as despesas totais do governo foram contraídas em termos reais durante a pandemia. Isto faz com que Jo Biden sobressaia em esplendoroso contraste com Narendra Modi.